Apesar da ampla disponibilidade de tratamentos baseados em evidências para transtornos mentais e por uso de substâncias, a maioria das pessoas afetadas ainda não recebe cuidados adequados. O cenário é crítico no caso do transtorno por uso de álcool (AUD), condição altamente prevalente, mas marcada por baixa procura por tratamento, cuidados de baixa qualidade e muito preconceito.
Baixa Cobertura de Tratamento Efetivo para a dependência de álcool
Dados recentes do World Mental Health Survey, publicados na revista JAMA Psychiatry, revelam que apenas 1,4% das pessoas com transtorno por uso de álcool receberam tratamento efetivo de acordo com diretrizes clínicas.1 O estudo analisou informações de mais de 56 mil adultos em 21 países, usando amostras populacionais representativas e entrevistas domiciliares padronizadas, com base no instrumento Composite International Diagnostic Interview (CIDI). A metodologia considerou três níveis de avaliação na chamada “cascata de cobertura”: (1) percepção de necessidade de tratamento, (2) contato com serviços de saúde e (3) recebimento de um tratamento efetivo, definido com base em critérios de frequência, duração e aderência, tanto para psicoterapia quanto para farmacoterapia. No caso do AUD, os dados indicaram que apenas cerca de um terço dos afetados percebiam a necessidade de ajuda, e uma fração ainda menor efetivamente buscava ou recebia tratamento com qualidade compatível às diretrizes internacionais.1
Desigualdade de Acesso e Subutilização dos Serviços
A baixa percepção da necessidade de tratamento, aliada ao estigma social e ao despreparo de muitos profissionais de saúde, contribui para o subtratamento do AUD. Uma revisão publicada na Lancet Psychiatry em 2022, reforça esse cenário ao apontar que menos de 10% dos pacientes com AUD na Europa recebem algum tipo de intervenção especializada, mesmo com histórico de contato prévio com os serviços de saúde.2
Impacto de Intervenções Simples e Oportunas
Estudos também sugerem que até mesmo intervenções breves, realizadas durante hospitalizações por outras causas, podem reduzir mortalidade e readmissões entre pessoas com dependência de álcool e outras substâncias. Uma pesquisa mostrou que esse tipo de abordagem pode gerar benefícios clínicos relevantes, ainda que o paciente não tenha acesso subsequente a serviços especializados.3
Conclusão e Implicações para Políticas Públicas
Diante da grande lacuna no tratamento da dependência de álcool e outras substâncias, é urgente uma resposta que vá além de ampliar a oferta de serviços. É preciso capacitar a atenção primária para identificar e iniciar o tratamento, garantir a continuidade do cuidado e enfrentar o estigma que ainda afasta muitos pacientes dos serviços.
Em muitas cidades brasileiras, ainda faltam medicamentos básicos para o tratamento da dependência de álcool, o que compromete diretamente a eficácia das intervenções. Políticas públicas devem focar não só no acesso, mas na qualidade do tratamento, assegurando formação profissional, oferta regular de medicamentos e integração entre saúde mental e atenção primária.
1. Vigo, D.V., Stein, D.J., Harris, M.G., et al. (2025). Effective Treatment for Mental and Substance Use Disorders in 21 Countries. JAMA Psychiatry, 82(4), 347–357. https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2024.4378
2. Rehm, J., Manthey, J., Shield, K.D., Ferreira-Borges, C. (2022). Barriers to treatment for alcohol use disorders in Europe: a literature review. Lancet Psychiatry, 9(2), 89–100. https://doi.org/10.1016/S2215-0366(21)00485-6