O uso nocivo de álcool entre a população idosa traz sérias complicações de saúde e pode até mesmo levar a óbito. Sabe-se que o álcool é o 7º maior fator de risco para a carga total de doenças entre indivíduos de 50 a 69 anos e o 10º para indivíduos maiores de 70 anos1.
Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), a intervenção breve (IB) é uma das medidas com melhor custo-benefício para o tratamento do uso nocivo de álcool2. Essa abordagem terapêutica, muito utilizada para o tratamento do alcoolismo, pode ser aplicada também a outros transtornos de saúde mental. Ela consiste em um conjunto de práticas que visam identificar um problema, real ou potencial, relacionado ao uso do álcool, e motivar a pessoa a fazer algo a respeito (saiba mais em Intervenção Breve para o uso nocivo de álcool).
Recentemente, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão Preto, avaliaram a efetividade da intervenção breve na redução do consumo de risco de álcool em idosos assistidos na Atenção Primária à Saúde3. O estudo, realizado na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, envolveu indivíduos com 60 anos ou mais que relataram o uso de álcool, classificados com escore ≥ 5 e ≤ 19 no Audit (figura 1). A maioria dos participantes era do sexo masculino, casado, com renda familiar entre 1 a 3 salários mínimos, sendo parte deste grupo aposentados, com escolaridade entre 1 a 4 anos de estudo. Segundo o autor da pesquisa, as características da IB em idosos podem incluir o fornecimento de informações sobre comportamentos de saúde e os riscos associados ao nível de consumo; interpretação dos resultados da triagem e discussão sobre os motivos para beber e suas possíveis consequências, conhecendo suas redes de apoio e negociando um plano de mudanças para reduzir o consumo de álcool.
Figura 1. Fluxograma da triagem dos idosos de álcool
Os resultados sociodemográficos da pesquisa mostraram que 46,5% (n=234) dos participantes apresentaram consumo de baixo risco; 44,5% (n=224) tinham padrão de consumo de risco de álcool e 9,1% (n=46) eram possíveis dependentes. Para os indivíduos que apresentaram o padrão de consumo de risco, o estudo avaliou o protocolo de intervenção breve, analisando o padrão de consumo de álcool, a quantidade de doses, a frequência e o comportamento de binge drinking nesses indivíduos antes e após serem submetidos a intervenção ou a entrega de folhetos informativos (grupo controle).
Como principal desfecho, o estudo mostrou uma redução significativa no padrão de consumo de álcool no grupo em que foi aplicada a intervenção breve, ao longo do tempo (entre 3 a 6 meses). Além disso, foi observada uma diminuição no consumo habitual e no comportamento binge drinking. Assim, o estudo conclui com a recomendação do protocolo de intervenção breve para idosos em consumo de risco de álcool assistidos pela Atenção Primária à Saúde.
O álcool é um dos principais fatores de risco para a carga global de doenças em pessoas com 50 anos ou mais e as consequências do consumo nocivo de álcool durante esta fase incluem desde déficits no funcionamento cognitivo e intelectual à recorrência de outros problemas de saúde relacionados à idade. Por isso, um acompanhamento por profissionais da saúde dirigido para esta população é essencial para compreender este comportamento e seus desdobramentos para que, posteriormente, orientações e tratamentos adequados sejam elaborados para o melhor cuidado da saúde do idoso.
Para falar mais sobre esta pesquisa e o impacto do protocolo de intervenção breve para idosos em consumo de risco álcool, o CISA conversou com Deivson Wendell da Costa Lima, principal pesquisador do estudo. Confira:
1. Quais as principais vantagens da intervenção breve (IB) para idosos em consumo de risco de álcool? Foi identificada alguma especificidade tanto em relação ao uso de risco quanto à aplicação do protocolo para essa faixa etária?
A realização da IB ao idoso foi estratégica no contexto da Atenção Primária à Saúde (APS) por enfatizar uma ação de prevenção na comunidade; abordar diferentes problemas de saúde e interações com medicamentos que poderiam estar relacionadas ao consumo de álcool; avaliar a motivação do idoso para mudança de consumo de álcool que ajudaria compreender a necessidade de diminuir o consumo de risco para baixo risco ou não consumo; trabalhar junto com os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) que cooperaram para o desenvolvimento do protocolo.
A IB aconteceu por meio de visita domiciliar agendada por um único pesquisador com formação em enfermagem, de forma individual, face a face e presencial em um ambiente da residência escolhido pelo idoso.
A visita domiciliar constituiu-se em um recurso apropriado para abordar o consumo de álcool e prevenir os riscos relacionados ao álcool in loco dos idosos, uma vez que pode favorecer a intervenção precoce do álcool e o conhecimento das suas condições de saúde e da sua dinâmica familiar e social.
Nossa intervenção breve foi realizada por um pesquisador com graduação em enfermagem, especialista em saúde mental e em formação de pesquisadores em álcool e outras drogas. O pesquisador enfermeiro foi o único que conduziu o protocolo de intervenção breve, seguindo as orientações de cada fase. Estudos demonstram que os idosos assistidos por enfermeiros em ambientes da APS, que fornecem intervenção breve, tiveram menores chances de beber em risco do que aqueles sem essa abordagem.
Os questionamentos mais curtos sobre as condições de saúde e em seguida sobre o consumo de álcool fizeram parte da abordagem inicial na entrevista e representaram uma alternativa para os idosos sentirem-se mais acolhidos ao falar sobre sua relação com o consumo de álcool.
A sessão teve um tempo de duração mediana de 30 minutos, o que parece ser potencialmente mais aceitável para a população-alvo. Pesquisadores mostraram que aconselhamentos mais curtos tem maior efeito adicional sobre as intervenções breves para reduzir o consumo de álcool.
Nosso protocolo de intervenção breve envolveu técnicas da entrevista motivacional com fundamentação teórica na Teoria Cognitiva Comportamental que facilitou o diálogo sobre o consumo de risco. Pesquisadores corroboram que esse envolvimento pode contribuir na diminuição das complicações da interação do álcool com medicamentos, atenuar os problemas de saúde agravados pelo consumo de álcool, bem como melhorar a qualidade de vida.
O simples fato de o idoso permitir sua participação na intervenção breve por si só pode ter sido o início de um processo positivo de mudança de comportamento do consumo de álcool. Os idosos parecem ser mais dispostos a se envolver em pesquisa do que a população geral e mais acertados em participar de protocolos de acompanhamento em comparação as populações mais jovens.
Cada fase do nosso protocolo de intervenção breve ofereceu cuidados apropriados à idade com orientações, questionamentos e complexidades únicas das pessoas com 60 anos ou mais. Deve-se notar também que não teve apenas um item de importância do protocolo, mas vários que se correlacionavam entre si. Mais pesquisas são necessárias sobre os itens eficazes das intervenções breves relacionadas ao álcool voltadas para os idosos.
2. Quais foram os principais desafios encontrados em relação à aplicação do protocolo de rastreio e IB nas unidades pesquisadas?
Frequentemente, o consumo de álcool é um comportamento pouco questionado pelos profissionais de saúde e, consequentemente, o padrão de consumo não é avaliado. Os riscos relacionados ao consumo de álcool apenas são descobertos quando por acaso os idosos procuram consultas para outros problemas de saúde.
Os idosos são menos propensos a acessar ou procurar ajuda, seja em cuidados na APS seja na atenção especializada, para problemas relacionados ao álcool. Apresentam dificuldades em reconhecer os riscos à saúde do consumo de álcool, muitas vezes associam os sintomas dessa substância psicoativa as manifestações de outras comorbidades ou queixas relacionadas ao processo de envelhecimento e não ao próprio álcool.
Os profissionais de saúde carecem de formações sobre os instrumentos de rastreamento e conhecimento das estratégias de intervenções apropriados aos idosos na modalidade presencial ou on-line, bem como necessitam de disponibilidade de tempo para acolher as necessidades dos idosos em relação ao consumo de álcool.
Outros desafios deste estudo também incluem uma ênfase no autorrelato dos dados pregressos sobre o consumo de álcool. Existe a probabilidade da subnotificação quando os idosos são solicitados a recordar seu consumo. As respostas podem envolver apenas o que é socialmente aceitável, sem revelar toda dimensão dos seus problemas. De maneira geral, o estado emocional e os problemas de memória também podem afetar os relatos dos idosos.
3. Em sua opinião, seria importante ampliar esse protocolo de rastreio e Intervenção Breve para outras localidades e faixas etárias? Quais são os desafios para que isso avance em nosso país?
Os momentos antecedentes a realização da intervenção breve, a pré-triagem e a triagem foram necessárias para sensibilização dos ACS e enfermeiros em participar da nossa pesquisa. A pré-triagem foi administrada usando uma única pergunta sobre o consumo de álcool já presente no cadastro individual do idoso utilizado pelos ACS das Unidades de Saúde da Família. Esse rastreamento foi breve e simples de administrar. As respostas dos idosos contribuíram para atualização do cadastro individual e para identificação dos possíveis classificados como padrão de consumo de risco.
A pré-triagem foi uma estratégia de rastreamento que permitiu tentar a coleta de dados em toda população elegível. O ponto positivo dessa estratégia foi que evitou viés de seleção de amostra, por exemplo, recrutando apenas idosos que consumiam maior quantidade de doses e em maior frequência.
Outra possibilidade para o processo de pré-triagem seria o uso do AUDIT-C em futuras pesquisas e na prática clínica. No contexto da APS, a avaliação inicial do consumo de álcool por meio do AUDIT-C poderia ser incluída na ficha de cadastro individual usada pelos ACS e nas consultas de rotina dos enfermeiros e demais profissionais de saúde. Após avaliação das perguntas, os idosos identificados com a pontuação de corte ≥ 4 no AUDIT-C poderiam receber o AUDIT completo para determinar seu nível de risco e quaisquer sinais de possível dependência.
Veja também Impactos do uso de álcool na saúde dos idosos