English Version

Doença hepática por álcool: o que sabemos hoje? por Roberto de Carvalho Filho

By Roberto de Carvalho Filho 18 Novembro 2025

O álcool faz parte da história da humanidade há milênios. Das primeiras fermentações na pré-história aos rituais sociais modernos, seu consumo se tornou um hábito quase universal. Mas o mesmo composto que simboliza celebração e convívio também é uma das principais causas de adoecimento e morte evitáveis em todo o mundo.

Dentre as várias consequências do uso abusivo, a doença hepática por álcool (DHAlc) é a mais emblemática. Ela representa um espectro de lesões que começa com o simples acúmulo de gordura no fígado, mas que pode evoluir para inflamação, fibrose, cirrose e câncer hepático. Trata-se da causa mais frequente de cirrose hepática no Ocidente e no Brasil.

O impacto global do álcool

Em todo o mundo, o consumo médio global de álcool puro é de 5,5 litros por pessoa ao ano, mas entre os que ingerem bebidas alcoólicas, essa média sobe para 12,4 litros. No Brasil, o consumo médio é de 7,7 litros por pessoa ao ano, e de 13,3 litros por pessoa ao ano entre os não abstêmios. Segundo o Relatório Global sobre Álcool e Saúde da Organização Mundial da Saúde1, cerca de 2,6 milhões de pessoas morrem todos os anos por causas relacionadas ao álcool, equivalente a 4,7% de todas as mortes no planeta.

A pandemia de COVID-19 agravou o problema. Estudos mostraram um aumento de mais de 30% nas internações por doença hepática alcoólica em vários centros médicos. O isolamento, a ansiedade e a piora do bem-estar social foram fatores desencadeantes do consumo excessivo em muitas populações.

Apesar do consumo crescente de bebidas alcoólicas, há dados limitados sobre a prevalência de DHAlc. Taxas superiores a 10% foram descritas em Uganda, Suécia, Itália e Índia. Não há dados brasileiros precisos sobre a prevalência da doença, mas o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA) estimou que, em 2022, mais de 11 mil óbitos anuais foram diretamente atribuíveis à doença hepática alcoólica.2 Neste levantamento, confirmou-se que a prevalência é maior entre os homens, embora tenha sido identificado um aumento de óbitos entre as mulheres, particularmente entre mulheres pretas. Vale destacar que as mulheres são biologicamente mais vulneráveis aos efeitos tóxicos do que os homens, já que metabolizam o etanol de forma mais lenta e têm maior concentração sanguínea da substância após o consumo da mesma dose. 

Como o álcool agride o fígado?

O fígado é o principal órgão responsável pela metabolização do etanol. Quando a pessoa bebe, a maior parte do álcool é transformada em acetaldeído, uma substância altamente tóxica. Esse processo, conduzido pelas enzimas álcool desidrogenase (ADH) e CYP2E1, gera radicais livres e estresse oxidativo, alterando profundamente o metabolismo hepático. O excesso de NADH, produzido na oxidação do etanol, inibe a degradação de ácidos graxos e estimula o acúmulo de gordura — é assim que surge a esteatose hepática, primeira fase da DHAlc. Se o consumo persistir, há ativação de células inflamatórias e liberação de citocinas (TNF-α, IL-6, IL-1β), que agravam ainda mais o dano ao tecido hepático.

Além do efeito direto, o álcool modifica a microbiota intestinal, aumenta a permeabilidade intestinal e permite que bactérias e endotoxinas atinjam o fígado, intensificando a inflamação. Com o tempo, o processo inflamatório repetido dá lugar à fibrose, quando o tecido normal é substituído por cicatrizes, que vão se acumulando no órgão.

Alguns fatores tornam certas pessoas mais propensas à progressão da doença. Um dos mais estudados é o gene PNPLA3, cuja mutação aumenta o risco de cirrose alcoólica em até três vezes. Outros fatores, como sexo feminino, obesidade, dieta rica em gordura e episódios de binge drinking (consumo episódico excessivo), também aceleram o dano hepático.

Etapas da doença

Nem toda pessoa que bebe muito desenvolve lesões hepáticas graves. A evolução depende da quantidade, da frequência e da duração do consumo, além de fatores genéticos e ambientais. História familiar de cirrose por álcool e a associação com certas condições, como diabetes, obesidade, hipertensão arterial, dislipidemia e tabagismo, aumentam o risco de desenvolvimento de cirrose e de suas complicações. Assim, mesmo pequenas quantidades regulares de álcool, quando associadas à síndrome metabólica, podem acelerar esse processo.

De modo geral, o espectro clínico da DHAlc segue esta progressão:

 

Como identificar a doença hepática por álcool?

O diagnóstico de DHAlc começa pela história clínica detalhada, fundamental para identificar o padrão de consumo abusivo de bebidas alcoólicas, tipicamente durante mais de 5 ou 10 anos. A maioria dos indivíduos com DHAlc (mas não todos) atende aos critérios de transtorno por uso de álcool (TUA), como tolerância e indícios de abstinência (atuais ou prévios), entre outros. Em certas situações, o uso de instrumentos de rastreamento, como o AUDIT-C (Alcohol Use Disorders Identification Test - Teste de Identificação de Transtornos pelo Uso de Álcool), pode ser útil. Ao exame físico, podem estar presentes sinais clássicos de doença hepática crônica avançada, tais como eritema palmar, telangiectasias, hepatomegalia, icterícia e ascite. Aumento das glândulas parótidas, contratura palmar de Dupuytren e certos achados neurológicos sugerem a etiologia alcoólica da doença hepática.

Nos exames laboratoriais, um achado característico é a razão AST/ALT > 1,5, com valores geralmente abaixo de 400 U/L. Outras alterações incluem aumento da gama-GT e do VGM (volume globular médio). Nas fases avançadas da doença, encontramos sinais de coagulopatia (plaquetopenia e RNI alargado), bilirrubinas elevadas e hipoalbuminemia. Outros métodos complementares podem acrescentar informações relevantes:

  • Ultrassonografia abdominal: mostra aumento do fígado e esteatose.
  • Elastografia hepática: mede a rigidez do órgão, estimando o grau de fibrose.
  • Biópsia hepática: indicada apenas quando há dúvida diagnóstica ou na suspeita de sobreposição com outras doenças.

A hepatite alcoólica — uma das formas mais graves da DHAlc — costuma se manifestar com icterícia recente, hepatomegalia dolorosa, febre baixa, leucocitose e relação AST/ALT > 2 ou 3. O diagnóstico é tipicamente clínico-laboratorial, mas a biópsia hepática pode ser necessária quando há fatores de confusão.

 

O tratamento: abstinência é a base!

Nenhum medicamento substitui o efeito da abstinência completa. Ela é o principal fator associado à melhora clínica e à redução da mortalidade. Em um estudo austríaco com 320 pacientes com cirrose, acompanhados por três anos, aqueles que conseguiram parar de beber tiveram sobrevida significativamente maior do que os que continuaram a ingerir álcool.3

A abstinência, porém, raramente é simples. Exige suporte contínuo, psicoterapia e, muitas vezes, uso de medicamentos para controlar o desejo e prevenir recaídas. As intervenções psicoterápicas são parte essencial do tratamento do TUA associado à DHAlc. As mais utilizadas são a entrevista motivacional, a terapia cognitivo-comportamental e a terapia dialética comportamental, além de abordagens complementares, como intervenções breves, psicanálise e terapias de grupo, que podem fortalecer a adesão e a autopercepção, especialmente quando integradas a uma rede de apoio familiar e social estruturada. 

O tratamento farmacológico do TUA associado à DHAlc atua como aliado da psicoterapia ao reduzir o desejo compulsivo de beber (fissura ou craving). As opções mais utilizadas no Brasil são a naltrexona e o baclofeno, cuja eficácia e segurança já foram demonstradas em estudos clínicos com indivíduos com DHAlc. A gabapentina e o topiramato vêm sendo estudados com resultados promissores. O acamprosato, que estabiliza a atividade dos neurotransmissores GABA e glutamato, seria outra boa opção, mas não está disponível no Brasil atualmente. O dissulfiram, embora eficaz ao provocar reação aversiva ao consumo, não deve ser usado em pacientes com suspeita de DHAlc pelo risco elevado de toxicidade hepática. Qualquer que seja a droga utilizada, deve-se lembrar que o sucesso terapêutico depende sempre de acompanhamento médico contínuo e da associação com intervenções psicossociais.

Transplante hepático: quando não há outra saída

O transplante de fígado é a única opção curativa para cirrose avançada ou hepatite alcoólica grave sem resposta ao tratamento clínico. Durante muitos anos, exigia-se abstinência mínima de seis meses antes da indicação. Hoje, essa regra é mais flexível: o foco é avaliar motivação, suporte familiar e adesão. Em um estudo clássico4 o transplante precoce indicado em casos selecionados de hepatite alcoólica grave e refratária resultou em sobrevida de 77% em seis meses, com recidiva de uso em apenas 15% dos casos. Estudos mais recentes confirmam esses resultados positivos, mostrando que, quando bem indicados, esses pacientes têm sobrevida comparável à de outras indicações de transplante.5,6

Conclusão e perspectivas

A doença hepática por álcool é um exemplo claro de como uma substância culturalmente aceita pode causar danos silenciosos e profundos à saúde. O fígado “sofre calado” por muito tempo, sem sintomas, até que as lesões se tornem irreversíveis. Mas há boas notícias: a capacidade de regeneração hepática é notável. Quando o uso de álcool é interrompido, o processo de cicatrização começa quase imediatamente e melhorias podem ser observadas em poucas semanas.

A DHAlc é uma doença 100% evitável. A prevenção começa pela educação em saúde e pela identificação precoce do uso abusivo de álcool. Instrumentos simples, como o AUDIT-C, podem ser aplicados em unidades básicas de saúde para triagem de risco. Políticas públicas que restringem a propaganda e o acesso, aumentam os custos e incentivam ambientes sociais livres de álcool têm se mostrado úteis em muitos países e devem ser implementadas.

Do ponto de vista médico, é importante integrar hepatologistas, psiquiatras, nutricionistas e assistentes sociais em uma rede de cuidado contínuo. A abordagem deve ser empática, sem estigmatização, valorizando cada avanço do paciente em direção à abstinência.

A mensagem principal é simples e poderosa: não existe consumo de álcool totalmente seguro para o fígado. Quanto menos, melhor  e quanto antes parar, maior a chance do fígado se recuperar.

Additional Info

  • Referências:

    1. World Health Organization. Global status report on alcohol and health and treatment of substance use disorders. Geneva: WHO; 2024. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/978924009674

    2. CISA – Centro de Informações sobre Saúde e Álcool. DATASUS 2022–2024.

    3. Hofer, B. S., Simbrunner, B., Hartl, L., Jachs, M., Bauer, D. J. M., Balcar, L., Paternostro, R., Schwabl, P., Semmler, G., Scheiner, B., Staettermayer, A. F., Trauner, M., Mandorfer, M., & Reiberger, T. (2023). Alcohol Abstinence Improves Prognosis Across All Stages of Portal Hypertension in Alcohol-Related Cirrhosis. Clinical gastroenterology and hepatology : the official clinical practice journal of the American Gastroenterological Association, 21(9), 2308–2317.e7. https://doi.org/10.1016/j.cgh.2022.11.033

    4. Mathurin P, Moreno C, Samuel D, Dumortier J, Salleron J, Durand F, Castel H, et al. Early liver transplantation for severe alcoholic hepatitis. N Engl J Med. 2011;365(19):1790-1800. doi:10.1056/NEJMoa1105703.

    5. Louvet, A., Labreuche, J., Moreno, C., Vanlemmens, C., Moirand, R., Féray, C., Dumortier, J., Pageaux, G. P., Bureau, C., Chermak, F., Duvoux, C., Thabut, D., Leroy, V., Carbonell, N., Rolland, B., Salamé, E., Anty, R., Gournay, J., Delwaide, J., Silvain, C., … QuickTrans trial study group (2022). Early liver transplantation for severe alcohol-related hepatitis not responding to medical treatment: a prospective controlled study. The lancet. Gastroenterology & hepatology, 7(5), 416–425. https://doi.org/10.1016/S2468-1253(21)00430-1Louvet, A., & Mathurin, P. (2015). Alcoholic liver disease: mechanisms of injury and targeted treatment. Nature reviews. Gastroenterology & hepatology, 12(4), 231–242. https://doi.org/10.1038/nrgastro.2015.35

    6. Parker, R., Aithal, G. P., Becker, U., Gleeson, D., Masson, S., Wyatt, J. I., Rowe, I. A., & WALDO study group (2019). Natural history of histologically proven alcohol-related liver disease: A systematic review. Journal of hepatology, 71(3), 586–593. https://doi.org/10.1016/j.jhep.2019.05.020

     

    Referências consultadas:

    - Crabb, D. W., Bataller, R., Chalasani, N. P., Kamath, P. S., Lucey, M., Mathurin, P., McClain, C., McCullough, A., Mitchell, M. C., Morgan, T. R., Nagy, L., Radaeva, S., Sanyal, A., Shah, V., Szabo, G., & NIAAA Alcoholic Hepatitis Consortia (2016). Standard Definitions and Common Data Elements for Clinical Trials in Patients With Alcoholic Hepatitis: Recommendation From the NIAAA Alcoholic Hepatitis Consortia. Gastroenterology, 150(4), 785–790. https://doi.org/10.1053/j.gastro.2016.02.042

    - Altamirano, J., Miquel, R., Katoonizadeh, A., Abraldes, J. G., Duarte-Rojo, A., Louvet, A., Augustin, S., Mookerjee, R. P., Michelena, J., Smyrk, T. C., Buob, D., Leteurtre, E., Rincón, D., Ruiz, P., García-Pagán, J. C., Guerrero-Marquez, C., Jones, P. D., Barritt, A. S., 4th, Arroyo, V., Bruguera, M., … Bataller, R. (2014). A histologic scoring system for prognosis of patients with alcoholic hepatitis. Gastroenterology, 146(5), 1231–9.e96. https://doi.org/10.1053/j.gastro.2014.01.018

    - Thompson, R., Taddei, T., Kaplan, D., & Rabiee, A. (2024). Safety of naltrexone in patients with cirrhosis. JHEP reports : innovation in hepatology, 6(7), 101095. https://doi.org/10.1016/j.jhepr.2024.101095

    - Parker, R., Arab, J. P., Lazarus, J. V., Bataller, R., & Singal, A. K. (2025). Public health policies to prevent alcohol-related liver disease. Nature reviews. Gastroenterology & hepatology, 22(8), 587–594. https://doi.org/10.1038/s41575-025-01084-6

     

Assine o nosso Boletim

© CISA, Centro de Informações sobre Saúde e Álcool