Um estudo, publicado na conceituada revista JAMA Network Open, com dados de mais de 370 mil pessoas do Reino Unido através do banco de dados UK Biobank1 concluiu que mesmo poucas doses de álcool podem representar um risco para a saúde cardíaca. A média de idade da população analisada foi de 57 anos, sendo 54% mulheres. Em termos de consumo de álcool, a população ia de abstêmia até altas quantidades de consumo semanal, obtendo uma média geral de 9,2 doses padrão por semana (cada dose representa 14g de álcool puro, ou 350 mL de cerveja, 150 mL de vinho ou 45 mL de destilados). Bebedores foram separados em abstêmios (sem consumo), leves (até 8,4 doses por semana), moderados (de 8,4 a 15,4 doses por semana), pesados (de 15,4 a 24,5 doses por semana) e abusivos (mais do que 24,5 doses por semana). Seja entre bebedores leves ou pesados, as bebidas mais consumidas eram cerveja, vinho tinto, champanhe e destilados. Usando o método de randomização mendeliana tradicional (ou seja, linear) e não linear, foram avaliadas possíveis associações entre consumo de álcool e doenças cardiovasculares (por exemplo, hipertensão e doença arterial coronariana), bem como formas de associação correspondentes.
Os pesquisadores concluíram que o grupo de bebedores leves e moderados possuía indicadores de saúde cardiovasculares melhores do que o grupo de abstêmios, ou seja, com menores taxas de pessoas fumantes, menor índice de massa corpórea, maior taxa de exercícios físicos, e maior quantidade de consumo de vegetais. Estes indicadores, e não o consumo de álcool, seriam os responsáveis por menor risco de desenvolver doenças cardiovasculares . Apesar disso, o estudo concluiu que o consumo leve a moderado de álcool estaria associado a um risco mínimo de desenvolver doenças cardiovasculares, ao passo que o risco seria exponencialmente maior quanto mais intenso o consumo. Dessa forma, uma redução da ingestão de álcool reduziria significativamente o risco de consumidores pesados desenvolverem esse tipo de doença, enfatizando a importância de esforços substanciais para reduzir a ingestão de álcool entre os consumidores pesados e abusivos.
Apesar desses resultados importantes, o estudo ainda possui algumas limitações, como a possibilidade de que a associação entre o consumo de álcool e as doenças cardiovasculares sejam resultado de uma base genética compartilhada do banco de dados da pesquisa, em vez de representar uma relação causal direta. Assim, futuras análises testando os instrumentos genéticos, assim como o uso de maiores e mais diversas bases de dados genéticos serão importantes para referendar os resultados desse estudo.
Para saber mais sobre as implicações deste estudo, consultamos o Dr. Martino Martinelli Filho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Com relação ao estudo, ele diz:
"O estudo em questão é fundamentado em um biobanco dedicado à pesquisa, ferramenta usada para coleção de dados biológicos de grandes populações, cuja limitação é a baixa correlação de causalidade. Os autores do estudo procuraram avaliar variáveis fenotípicas e genotípicas associadas ao acometimento cardiovascular de consumidores de álcool do Reino Unido.
Os achados clínicos basais corroboram os de estudos prévios: curvas em J, demonstrando benefícios cardiovasculares para consumo leve a moderado de álcool. Ademais, foi reportado um dado novo: para obter essa proteção cardiovascular é essencial também praticar hábitos de vida saúdáveis.
Por outro lado, uma interessante iniciativa dos autores do estudo foi a busca de associações com achados genotípicos, mas sabe-se que a ferramenta utilizada (randomização mendeliana) também carece de melhor correlação de causalidade.
Portanto, esse estudo propõe novas abordagens de análise de consumo de álcool, mas seus achados não podem ser extrapolados para outras populações e não são suficientemente robustos para mudar as abordagens convencionais.
Nesse sentido, o InCor-HCFMUSP está conduzindo um estudo clínico em larga escala (PROSA-Projeto Saúde e Álcool), cujo propósito é avaliar os efeitos do consumo de álcool sobre as doenças cardiovasculares na população brasileira, utilizando questionário próprio e validado, especificamente, para quantificação de consumo de acordo com tipo de bebida".