O uso nocivo de álcool afeta mais de 2 bilhões de pessoas e é responsável por quase 6% de todas as mortes no mundo1. Semelhante a outras doenças multifatoriais crônicas, a fisiopatologia do alcoolismo é aproximadamente 50% hereditária e 50% secundária a fatores ambientais1. Contudo, apesar destas informações alarmantes, é importante ressaltar que o alcoolismo é uma condição prevenível e tratável.
Além das intervenções psicossociais, como a psicoterapia individual e em grupo, por exemplo, que desempenham um papel extremamente importante no tratamento da dependência do álcool, existem medicamentos que também podem auxiliar neste tratamento. Essas medicações ajudam a regular as substâncias químicas no cérebro responsáveis por aumentar a vontade de beber, além de reduzir a ansiedade ou aliviar os sintomas de abstinência quando se pára de beber, como tremores, fraqueza ou alucinações.
Tratamento farmacológico para o alcoolismo
Atualmente, este tratamento é realizado com base em três fármacos principais: o dissulfiram, a naltrexona e o acamprosato3, que são, nos Estados Unidos, aprovados pelo Food and Drug Administration, FDA. Um recente estudo de revisão mostrou a eficácia do tratamento farmacológico, mesmo diante dos efeitos significativos do placebo2. Os principais fármacos avaliados no estudo foram acamprosato, disulfiram, nalmefeno, naltrexona (oral e injetável), baclofeno, gabapentina, topiramato e vareniclina. O estudo mostrou que esses medicamentos, aprovados ou recomendados por diretrizes internacionais, atuam ajudando na diminuição da frequência e da intensidade do consumo alcoólico, além de reduzirem o desejo por álcool. E, embora os efeitos sejam modestos, os resultados do estudo reforçam que seu uso pode proporcionar benefícios significativos, especialmente quando combinado com suporte psicossocial.
Dissulfiram
O dissulfiram4,5 é um dos primeiros medicamentos aprovados pela FDA para o tratamento do alcoolismo. Trata-se de um inibidor das enzimas que decompõem o álcool em acetaldeído. A inibição da enzima acetaldeído-desidrogenase provoca um acúmulo de acetaldeído no organismo, levando à reação etanol-dissulfiram, caracterizada por fortes náuseas, vômitos ou até convulsões. Ou seja, essa medicação busca fazer com que o indivíduo crie uma aversão à bebida alcoólica devido aos efeitos colaterais, ou seja, produz reações tóxicas quando o medicamento é ingerido logo após o consumo de álcool5.
Apesar de seu histórico de uso e eficácia comprovada, atualmente o dissulfiram não está sendo comercializado no Brasil, o que limita seu acesso como opção terapêutica.
Naltrexona
A naltrexona4,5 é um medicamento utilizado como coadjuvante das intervenções psicossociais no tratamento do alcoolismo. Ela atua farmacologicamente como um antagonista nos receptores opióides, reduzindo os efeitos prazerosos do álcool, os desejos e sentimentos de euforia associados ao uso de substâncias alcoólicas. O álcool estimula indiretamente a atividade dos opióides endógenos ao promover a liberação de peptídeos endógenos (encefalinas e beta-endorfinas). Através da atividade excitatória destes peptídeos, as sensações prazerosas do álcool seriam mediadas pela estimulação dopaminérgica dos neurônios em uma região do cérebro denominada núcleo accumbens.
utro mecanismo da naltrexona é a atividade inibitória dos peptídeos endógenos sobre os interneurônios gabaérgicos, localizados numa área do cérebro chamada área tegmental ventral. Tais interneurônios exercem efeitos inibitórios sobre os neurônios dopaminérgicos. Assim, o uso de antagonistas opióides como a naltrexona, reduz o consumo de álcool através do bloqueio pós-sináptico destes receptores nas vias mesolímbicas.
Alguns estudos relatam dois tipos de resposta ao tratamento do alcoolismo de acordo com os o tipo de usuário: “bebedores de alívio” e “bebedor de recompensa”6. Os “bebedores de alívio” são caracterizados pelo consumo de álcool ser mantido para aliviar os estados afetivos negativos, como a angústia. Já o “bebedor de recompensa” utiliza o álcool por seus efeitos positivos e recompensadores, destacando indivíduos que gostam e desejam excessivamente o álcool, em particular as sensações descritas como “prazerosas” relacionadas a estar sob o efeito do álcool.
Para o usuário “bebedor de recompensa”, alguns pesquisadores mostraram que este perfil responde melhor o tratamento com naltrexona6. Em adultos jovens, por exemplo, um estudo mostrou que pacientes com alto nível de mecanismos de recompensa e alívio obtiveram melhores respostas com o tratamento, quando comparado ao placebo7,8.
Conheça mais sobre a atuação da naltrexona em Como a naltrexona atua no tratamento da dependência de álcool?
Importante: a naltrexona está disponível no Brasil em formulações orais. A formulação injetável de liberação prolongada, comum em alguns países, não está comercialmente disponível no Brasil até o momento, o que pode limitar seu uso em certos casos.
Acamprosato
O acamprosato4,5 tem se mostrado eficaz no tratamento da dependência de álcool. Ele inibe a atividade excitatória do glutamato no cérebro, agindo, provavelmente, em uma subclasse dos receptores glutamatérgicos (NMDA), especialmente quando há hiperatividade destes receptores. O acamprosato tem sido considerado um coagonista parcial do receptor NMDA. Estudos em animais indicaram que esta medicação reduz a recaptação do cálcio induzida pelo glutamato nos neurônios, suprimindo as respostas condicionadas ao etanol, reduzindo os efeitos aversivos da retirada do álcool além de inibir a hiperexcitabilidade cerebral do glutamato e a expressão gênica do c-fos (um gene de ação ativadora)5. Também há estudos que descrevem uma atividade sobre o sistema gabaérgico. O acamprosato melhora a recaptação do GABA no tálamo e hipotálamo. Desta forma, parece modular a atividade dopaminérgica no núcleo accumbens, reduzindo o reforço positivo relacionado ao consumo de álcool4.
Desafios do tratamento farmacológico no Brasil
O tratamento farmacológico do alcoolismo no Brasil enfrenta desafios significativos, especialmente após a descontinuação do dissulfiram em 2019 pela fabricante. Atualmente, a naltrexona permanece disponível no mercado mediante prescrição médica, e de forma gratuita em alguns municípios, como na cidade de São Paulo, por exemplo. O acamprosato não está disponível no mercado nacional. Essa limitação de opções pode comprometer a eficácia do tratamento da doença, especialmente quando não há acesso a abordagens combinadas com suporte psicossocial, evidenciando a necessidade de políticas públicas que garantam a disponibilidade e o acesso a medicamentos essenciais no combate ao alcoolismo.
É importante reforçar que o tratamento do alcoolismo não ocorre de maneira isolada. O resultado de um tratamento farmacológico também depende da abordagem psicoterápica como a Terapia Cognitiva Comportamental (TCC)3. Além disso, o tratamento farmacológico do alcoolismo sempre passa por atualizações e que existem possibilidades de combinações de outras classes de medicamentos, visando tratar possíveis comorbidades.
Essas medicações devem sempre ser usadas com indicação e orientação de um psiquiatra. O tipo de tratamento mais adequado para cada pessoa depende de suas características pessoais, da quantidade de bebida alcoólica que costuma ingerir e se já apresenta problemas de ordem emocional, física ou interpessoal decorrentes desse uso.
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