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Por que os indígenas estão bebendo mais?

18 Abril 2022

 

Consumo de álcool tem crescido entre os indígenas, aumentando os riscos de dependência e causando danos à saúde individual e à comunidade.

O consumo abusivo de álcool entre os indígenas tem se tornado um fenômeno cada vez mais frequente e preocupante, acontecendo não só com os brasileiros, como também entre os povos nativos dos Estados Unidos, Canadá e Austrália.

No Brasil, há poucas pesquisas sobre o tema e pouco se sabe sobre a realidade do consumo de bebidas alcoólicas por essa população, mas, apesar das poucas evidências científicas conclusivas, alguns pesquisadores dizem que os indígenas podem ter algum fator de predisposição genética que aumente o risco para dependência de álcool1.

Em que contexto os indígenas bebem?

As taxas de consumo de álcool entre os indígenas variam e não há uma causa única para o abuso, que pode ocorrer de acordo com contextos socioculturais específicos de cada etnia.

Sabe-se que a fabricação e o uso de bebidas fermentadas e substâncias psicoativas originou-se da necessidade humana de ritualizar a vida social, observada em praticamente todas as culturas. Tradicionalmente, as bebidas alcoólicas consumidas pelos indígenas eram produzidas por eles num processo de fermentação de leveduras ou bactérias do milho, batata doce, mandioca ou de algumas frutas, dependendo do grupo étnico2.

Em geral, o uso dessas substâncias está ligado à esfera sagrada e à cosmologia de cada etnia. No passado, algumas comunidades preparavam e ingeriam bebidas, como caiçuma, chicha e outras, com o objetivo de facilitar a sociabilidade, as negociações de casamento e alianças entre as comunidades. Seu uso era para eventos, tais como celebração de um novo líder, alianças ou relações de amizade com outros grupos indígenas, aniversários e casamentos2.

Entre os povos amazônicos, por exemplo, as bebidas fermentadas estão ligadas ao sagrado, ao divertimento, à reciprocidade e até mesmo à política. Já os Kaingang, população indígena do sul do Brasil, tradicionalmente costumam realizar a festa do kiki, uma bebida feita a partir do mel fermentado. Na ocasião, utilizam a bebida como afirmação simbólica da identidade étnica e da organização social, marcando as refeições recíprocas entre os vivos e os mortos e as relações entre as duas metades que formam a sociedade Kaingang. Com o passar do tempo, entretanto, a cachaça foi incorporada ao ritual e adicionada à bebida feita de mel, o que passou a dar ao evento a impressão de ser uma grande bebedeira, conhecida localmente como “farra dos índios”2.

Consumo de álcool nos dias atuais

Apesar de terem aprendido a consumir o álcool seguindo os valores e rituais manifestados por seu grupo, muitos povos indígenas viram seu estilo de beber mudar e perder o vínculo com sua cultura. Assim, o uso das tradicionais bebidas fermentadas marcado pelos limites socioculturais deixou de ocorrer em boa parte das comunidades indígenas sul-americanas. Muitos passaram a beber outras substâncias em suas festas tradicionais, bem como em novos contextos. Essa nova forma de consumo é resultado das mudanças que ocorreram dentro das comunidades, como o contato interétnico, o aumento da circulação de bebidas na região das aldeias e o advento das bebidas industrializadas.

Um estudo realizado com 230 indígenas de 12 aldeias Karipuna em Oiapoque, no Amapá, mostrou que a prevalência do uso abusivo de álcool foi de 24,8% de uma a três vezes ao ano; de 20,4% de quatro a seis vezes; de 12,2% de sete a dez vezes e de 9,6% em mais de dez vezes ao ano1. 70% dos entrevistados na pesquisa afirmaram usar bebidas alcoólicas, sendo a cerveja a bebida mais consumida (51,6%). Além disso, o consumo de álcool tem acontecido cada vez mais precocemente, inclusive há registros de crianças que já estão utilizando a substância: a pesquisa mostrou que 90,1% da amostra deu início ao consumo entre os nove e 20 anos de idade.

Nesta pesquisa, a maioria dos indígenas entrevistados teve seu primeiro contato com bebidas alcoólicas diferentes das tradicionais na própria aldeia (70,8%), sendo o local de maior consumo em casa. A compra de bebidas, entretanto, costuma ocorrer principalmente em mercados (59%) devido ao fácil acesso.

Apesar de 59% dos indígenas da amostra afirmarem que a bebida nunca lhes causou problema, 85,7% consideram que o consumo é um problema na comunidade, principalmente no que diz respeito às mudanças de comportamento (70,6%).

O crescente consumo nocivo de bebidas alcoólicas pelos indígenas, associado a novos hábitos alimentares e a um estilo de vida mais sedentário, que passou a incluir também o uso do tabaco, resultou em consequências altamente negativas para as comunidades e sua saúde, como violência geral e familiar, desnutrição, danos à saúde das crianças, incluindo casos de síndrome alcoólica fetal, entre outras. Além disso, as relações externas das comunidades também têm sido impactadas, levando a problemas de ordem pública e judicial, construção de uma imagem negativa e questionamentos em relação a seus direitos e aos programas sociais voltados para esse grupo populacional.

Outro aspecto fundamental diz respeito às condições de vida e saúde precárias em diversas terras indígenas, caracterizadas por elevadas prevalências de carências nutricionais, doenças infectoparasitárias assim como doenças crônicas não transmissíveis3. No relatório da visita in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos4 ao Brasil, em 2018, foi constatada a persistência de um cenário de desigualdade social e discriminação estrutural e sistêmica contra povos indígenas e outros grupos sociais minoritários5. Todos esses fatores colocam a população indígena em situação de vulnerabilidade e podem contribuir para o consumo abusivo de álcool.

 

Como prevenir o consumo nocivo de álcool entre os indígenas?

Como cada etnia, além de sua especificidade cultural, tem também diferenças políticas, históricas e econômicas, é preciso procurar soluções que reflitam tal diversidade a fim de prevenir o consumo nocivo do álcool e suas consequências.

Nesse sentido, é necessário construir programas de prevenção em parceria com esses grupos a fim de identificar os fatores coletivos e específicos que contribuem para a consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Trabalhar com as comunidades envolvidas, buscando entender o significado do álcool em suas tradições e as mudanças vistas atualmente também é uma forma de identificar causas e possíveis respostas para os problemas específicos que se apresentam nas aldeias. É preciso também eliminar preconceitos e estigmas, como o de que o alcoolismo, bem como outros estereótipos negativos, faz parte da identidade dos povos originários.

Em outras palavras, as possíveis soluções para a prevenção do problema devem considerar o problema do uso nocivo e da dependência do álcool à luz das particularidades desses povos para a construção da qualidade de vida e do bem-estar sem deixar de lado suas tradições.

 

 

Additional Info

  • Referências:
    1. Castelo-Branco FMF, Vargas D. Binge drinking and associated factors in indigenous people from Karipuna. SMAD, Rev Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. 2021 jan.- mar.;17(1):7-16. doi: https://dx.doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2021.167996

     

    1. Langdon, E. J. (2013). O Abuso de Álcool entre os Povos Indígenas no Brasil: uma avaliação comparativa. In M. L. P. de Souza (Ed.), Processos de alcoolização Indígena no Brasil: perspectivas plurais (DGO-Digital original, pp. 27–46). SciELO – Editora FIOCRUZ. http://www.jstor.org/stable/10.7476/9788575415818.5

     

    1. FIOCRUZ – FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. 4º relatório – 18 abril 2020: risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. Gitlab, 18 abr. 2020. Disponível em:

            https://gitlab.procc.fiocruz

     

    1. OEA – ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Situação dos direitos humanos no Brasil. Washington, DC: OEA, 2021. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/relatorios/pdfs/Brasil2021-pt.pdf. Acesso em: 10 mar. 2022
    2. BRAGATO, F. F.; RIOS, R. R.; BERNARDI, B. B. COVID-19 e os indígenas no brasil: proteção antidiscriminatória étnico-racial e direitos de minorias. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, v. 18, n. 40, 2021.

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