Na 11ª revisão da CID, OMS atualiza o diagnóstico de transtornos por uso de álcoolO que é a Classificação Internacional de Doenças?A Classificação Internacional de Doenças (CID) é um compêndio de distúrbios humanos e condições de saúde relacionadas, atualizado periodicamente pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A CID abrange informações sobre doenças, sinais, sintomas, achados anormais, circunstâncias sociais e causas externas. Seu objetivo é estabelecer definições e fornecer diretrizes para auxiliar no diagnóstico médico, além de fornecer base para o registro, compilação e análise de estatísticas de morbidade e mortalidade. Também auxilia na formação de profissionais da área da saúde e facilita a colaboração internacional entre pesquisadores. Os diagnósticos da CID são frequentemente comparados com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM) publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), que aborda exclusivamente transtornos mentais e comportamentais. O capítulo de saúde mental da décima revisão da CID (CID-10) foi desenvolvido em estreita colaboração com o DSM-IV, publicado em 1994, com atenção para que as entidades diagnósticas fossem comparáveis entre os dois. A décima primeira revisão da CID (CID-11), que entrou em vigor no começo de 2022[1] traz algumas mudanças para os diagnósticos de transtornos por uso de álcool. Neste artigo, apresentamos o histórico dos diagnósticos de transtornos por uso de álcool e as mudanças específicas incorporadas na CID-11. [1] É importante salientar que a tradução oficial para o português ainda não está finalizada. Por esse motivo, muitas instituições continuam utilizando a CID-10.Histórico dos diagnósticos de transtornos por uso de álcoolNas versões anteriores da CID e do DSM, os transtornos por uso de álcool eram definidos como distúrbios que incluíam consumo excessivo de álcool, compulsão por beber, abstinência e negação de problemas, tendo sido descritos até mesmo como um subtipo de transtorno de personalidade (1) (2). Na CID-9 e no DSM-III os diagnósticos de uso de substâncias foram separados dos transtornos de personalidade e a categoria diagnóstica de abuso de álcool sem dependência foi introduzido. A “descrição provisória de uma síndrome clínica” de dependência de álcool publicada por Edwards e Gross (3) foi um marco fundamental que introduziu um modelo que separava a dependência de álcool das consequências prejudiciais do seu uso. Na OMS, outras entidades diagnósticas além da dependência também estavam sendo exploradas para definir padrões excessivos de uso de álcool: Uso Nocivo, definido como o consumo que leva a danos físicos ou mentais; Uso Disfuncional, definido como o consumo que leva a problemas sociais; Uso Arriscado, cuja quantidade ou padrão de consumo confere riscos de danos futuros; Uso Não Autorizado, consumo que causa a reprovação da sociedade. Somente o Uso Nocivo foi incorporado à CID-10. A OMS também desenvolveu o modelo tridimensional, que incorpora dependência, dano e medidas de consumo (4), exemplificado pelo questionário do Teste de Identificação de Distúrbios do Uso de Álcool (AUDIT) (5).A síndrome da dependência do álcool na CID-10O diagnóstico central na CID-10 é a Síndrome de Dependência do Álcool, que tem 6 critérios diagnósticos, dos quais a presença de 3 ou mais é necessária para o diagnóstico: forte desejo ou compulsão para consumir álcool; capacidade prejudicada de controlar o consumo; priorização do consumo de álcool em detrimento de outros interesses; evidência de tolerância ao álcool; estado de abstinência fisiológica; uso persistente de álcool apesar de evidências de consequências prejudiciais. O uso nocivo do álcool e outros diagnósticos na CID-10O segundo principal diagnóstico na CID-10 é o Uso Nocivo de Álcool, definido como um padrão de uso que causa danos físicos e mentais à saúde. O diagnóstico de uso nocivo não pode ser feito concomitantemente ao diagnóstico de dependência de álcool, para evitar que haja dupla contagem de distúrbios e dificuldades de monitoramento estatístico das doenças. Todavia, do ponto de vista clínico e de pesquisa, não permitir diagnósticos concomitantes é uma questão ainda debatida. A CID-10 também inclui definições de transtornos que podem ser considerados como danos específicos, tais como Intoxicação por Álcool, Abstinência, Transtorno Psicótico e a Síndrome Amnésica.Visão geral da CID-11Na décima primeira revisão da CID (CID-11), publicada em maio de 2019, os transtornos por uso de álcool formam uma parte fundamental da seção de Transtornos Devidos ao Uso de Substâncias e Comportamentos Aditivos. Definir os transtornos relacionados ao consumo de álcool e identificar o consumo de risco é fundamental para o diagnóstico clínico preciso, o monitoramento da doença e, mais amplamente, para a comunicação eficaz entre os profissionais dos sistemas de saúde e bem-estar. Em comparação com a CID-10, as principais mudanças na CID-11 são as seguintes (6): atualização e ampliação de classes de substâncias; simplificação das diretrizes diagnósticas para dependência de substâncias; maior especificação dos padrões nocivos de uso de substâncias, que podem ser contínuos ou episódicos e recorrentes; introdução de nova categoria para denotar episódios únicos de uso nocivo; introdução do uso de substâncias perigosas como fator de risco para a saúde (fora do capítulo de transtornos de substâncias); mudanças na gama de transtornos mentais induzidos pelo álcool; transferência dos transtornos neurocognitivos relacionados ao álcool para a seção de “Demências relacionadas ao uso de substâncias psicoativas”. A CID-11 mantém a Dependência de Álcool como o diagnóstico mestre e a distinção entre Dependência de Álcool e Uso Nocivo de Álcool, agora denominado Padrão Nocivo de Uso de Álcool. O Uso Arriscado de Álcool como fator de risco à saúde foi incluído na CID-11.Dependência de álcool na CID-11Os critérios diagnósticos foram simplificados e combinados para que, ao invés de 6 características, existam 3, das quais 2 precisam estar presentes para o diagnóstico: Controle prejudicado sobre o uso de álcool; Prioridade crescente do uso de álcool, que assume um papel cada vez mais central na vida do indivíduo; Características fisiológicas, como tolerância e abstinência. A Dependência de Álcool é definida na CID-11 como um distúrbio de regulação decorrente do uso repetido ou contínuo. O traço característico é um forte impulso interno, que se manifesta pela capacidade prejudicada de controlar o consumo, aumentando a prioridade dada ao álcool sobre outras atividades e a persistência do uso apesar de danos ou consequências negativas. Essas características geralmente são evidentes por um período de 12 meses, porém o diagnóstico pode ser feito se o uso de álcool for contínuo (diariamente ou quase diariamente) por pelo menos 1 mês. A Dependência do Álcool é, portanto, entendida como uma resposta adaptativa adquirida após o uso repetido de álcool, e não como um distúrbio biológico primário, de acordo com as evidências neurobiológicas recentes (7).Padrão nocivo de uso e uso arriscado de álcool na CID-11O Padrão Nocivo de Uso de Álcool é definido como um padrão de uso que já causou danos à saúde física ou mental de um indivíduo ou resultou em comportamento danoso à saúde de terceiros. É um diagnóstico de sub-dependência que abrange muitos padrões diferentes de consumo e danos. O Padrão Nocivo não tem contrapartida direta nos DSM-IV e DSM-5. Na CID-11, o Uso Arriscado de Álcool é definido como um padrão de uso que aumenta consideravelmente o risco de consequências prejudiciais à saúde física ou mental do usuário ou de terceiros, a ponto de merecer atenção e aconselhamento de profissionais de saúde. O aumento do risco se dá tanto pela frequência de uso quanto pela quantidade utilizada em determinada ocasião ou, ainda, por comportamentos de risco associados ao uso de álcool. Esta nova categoria está incluída dentro de um capítulo separado e também não tem equivalente direto no DSM-5. A ausência de consequências físicas e mentais diagnosticadas é uma característica chave que distingue o Uso Arriscado do Uso Nocivo de Álcool. Nenhum padrão de consumo está especificado na sua definição, embora a OMS e muitos governos nacionais tenham definido o que constitui o uso arriscado de álcool. Existe uma grande base de evidências que identifica relações de dose-resposta para consequências mentais e físicas distintas (8, 9).Episódio de uso nocivo, intoxicação e abstinência e outros transtornos relacionados ao álcool na CID-11Um novo diagnóstico na CID-11 é o Episódio de Uso Nocivo de Álcool, que envolve principalmente danos agudos à saúde, além dos sintomas de intoxicação aguda ou abstinência, e comumente lesões. A inclusão desse diagnóstico visa superar um problema prático, no qual um indivíduo tenha danos relacionados ao consumo de álcool, mas não haja informações sobre o seu padrão de consumo ou se o indivíduo se encaixaria no diagnóstico de Dependência ou de Uso Nocivo de Álcool. A Intoxicação por Álcool e a Abstinência de Álcool são distúrbios clínicos comuns e bem estabelecidos. Na CID-11, a Intoxicação por Álcool é definida como uma condição transitória que se desenvolve durante ou logo após o consumo de álcool, caracterizada por distúrbios de consciência, cognição, percepção, comportamento e coordenação, podendo até chegar ao coma. Sua intensidade está relacionada à quantidade de álcool consumida e os sintomas diminuem à medida que o álcool é eliminado do organismo. Na CID-11, a Abstinência de Álcool é definida como um conjunto de sintomas, comportamentos e/ou características fisiológicas que ocorre após a cessação ou redução do uso de álcool em indivíduos que desenvolveram dependência ou usaram álcool por um período prolongado ou em grande quantidade. Os sintomas podem incluir hiperatividade do sistema nervoso autônomo, tremor, náusea, insônia e agitação. O álcool pode ter um efeito persistente no estado mental de um indivíduo, e 6 transtornos mentais induzidos pelo consumo nocivo de álcool foram identificados: delirium, Transtorno Psicótico, Transtorno do Humor, Transtorno de Ansiedade, Disfunção Sexual e Transtorno do Sono-Vigília. Além disso, existem dois distúrbios neurocognitivos induzidos pelo álcool, classificados dentro das categorias de Transtorno Amnésico e de Demência. Na CID-11, os transtornos físicos induzidos pelo álcool são classificados nas respectivas seções de órgãos e sistemas corporais. O álcool é um fator de risco para muitos distúrbios físicos, podendo, inclusive, ser o principal agente causal. Por exemplo, a cirrose alcoólica do fígado está incluída no capítulo Doenças do Aparelho Digestivo.