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A relação entre o consumo de álcool e o desenvolvimento de transtornos relacionados apresenta um panorama surpreendente. Contrariando o que se poderia esperar, dados globais de 2020 revelam que países com maior consumo médio per capita nem sempre registram as maiores taxas de transtornos por uso de álcool. O Brasil, com consumo de 7,7 litros per capita e prevalência de 2,5% de transtornos, exemplifica como os padrões de consumo e o acesso ao tratamento podem ser mais determinantes que o volume total ingerido.

 

Os países que mais bebem em média são os que apresentam maiores problemas relacionados ao uso de álcool? Dados  do Global Burden of Disease mostram que não. Países europeus como França e Reino Unido, com consumo superior a 10 litros per capita anuais, apresentam taxas de transtornos comparáveis às do Brasil, que consome significativamente menos, ou seja, 7,7 litros per capita anuais. Em contrapartida, nações como Guatemala, Cazaquistão e Mongólia registram prevalências significativamente mais altas de transtornos, mesmo com consumos médios inferiores moderados.

O gráfico abaixo evidencia a ausência de correlação entre o consumo médio de álcool (consumo per capita) e a prevalência de transtornos relacionados ao uso da substância.

 

Figura 1. Proporção da população com transtorno do uso de álcool vs. consumo médio de álcool, 2020

 

Padrões de consumo: o verdadeiro fator de risco

O que explica essa aparente contradição é que o padrão de consumo tende a exercer maior influência no desenvolvimento de transtornos do que o volume total. O consumo de grandes quantidades concentrado em ocasiões específicas ("binge drinking") apresenta potencial consideravelmente maior para causar problemas, incluindo a dependência, do que o consumo moderado distribuído ao longo do tempo, mesmo quando o volume total anual é semelhante.

No Brasil, estudos epidemiológicos identificaram uma prevalência significativa do padrão de consumo intenso, particularmente entre jovens adultos e em contextos festivos, o que contribui para a taxa de transtornos observada. Segundo os dados mais recentes do Ministério da Saúde, aproximadamente 20% dos brasileiros que consomem álcool adotam o padrão de consumo considerado abusivo.

Acesso ao diagnóstico e tratamento

Outro fator determinante para compreender as disparidades entre os países é a capacidade dos sistemas de saúde para diagnosticar adequadamente e oferecer tratamento para transtornos relacionados ao álcool. Países com sistemas de saúde mais estruturados podem apresentar dados mais precisos sobre a prevalência desses transtornos.

No Brasil, apesar dos avanços do Sistema Único de Saúde (SUS) e da implementação dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD), ainda existem desafios consideráveis na cobertura e qualidade dos serviços especializados, especialmente em regiões mais remotas e vulneráveis. Estima-se que menos de 10% das pessoas com transtornos relacionados ao álcool recebam tratamento adequado.

Fatores socioculturais e vulnerabilidades

A influência de fatores socioculturais é evidente quando analisamos diferentes tradições relacionadas ao consumo de álcool. Em países mediterrâneos, onde o consumo está tradicionalmente integrado às refeições familiares, observam-se menores taxas de transtornos em comparação com culturas onde predomina o consumo recreativo intenso.

Estudos científicos destacam que, além do padrão de consumo, elementos como idade de início, contexto social e fatores de vulnerabilidade socioeconômica influenciam significativamente o desenvolvimento de transtornos por uso de álcool, independentemente do volume total consumido. A Organização Mundial da Saúde, em seu relatório global sobre álcool e saúde de 2018, confirma que a idade precoce de início do consumo e condições socioeconômicas desfavoráveis estão entre os principais fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos relacionados ao álcool, além dos padrões de consumo de alto risco.

Implicações para políticas públicas

A ausência de correlação direta entre volume de consumo e prevalência de transtornos tem implicações importantes para o desenvolvimento de políticas públicas eficazes. Intervenções focadas exclusivamente na redução do volume total podem não atingir os resultados esperados na diminuição dos transtornos.

Para o Brasil, os dados reforçam a necessidade de políticas que considerem as particularidades dos padrões de consumo nacionais, com ênfase na redução do consumo intenso e na promoção de hábitos mais moderados. Campanhas de conscientização sobre os riscos do "binge drinking", especialmente direcionadas aos jovens, combinadas com o fortalecimento das redes de atenção à saúde mental, representam estratégias promissoras para a redução dos danos relacionados ao álcool no país.

Considerações finais

A análise dos dados globais de 2020 sobre consumo de álcool e prevalência de transtornos demonstra que a medida do consumo per capita é insuficiente para compreender e monitorar a prevalência de problemas relacionados ao álcool e que outros fatores são decisivos para se compreender os impactos da substância, como acesso a tratamentos, padrões de consumo e vulnerabilidades socioeconômicas. As estratégias mais eficazes para redução dos danos relacionados ao álcool devem, portanto, combinar medidas para modificação de padrões prejudiciais de consumo com a ampliação do acesso a serviços de diagnóstico e tratamento adequados, considerando as particularidades culturais e socioeconômicas de cada população.

 

 

As diferenças no padrão de consumo podem influenciar como a pessoa lida com suas emoções e até certos traços de personalidade. A seguir, exploramos evidências científicas recentes que mostram como pessoas que bebem moderadamente diferem emocionalmente daquelas que fazem uso abusivo de álcool, considerando regulação emocional, traços de personalidade e fatores individuais envolvidos.

 

Regulação Emocional e Manejo do Estresse

Por que algumas pessoas conseguem consumir álcool de forma moderada, sem ter problemas, ao passo que outras têm dificuldades de lidar com a substância? Uma diferença importante entre beber moderadamente e abusar do álcool está na capacidade de regulação emocional – ou seja, como a pessoa gerencia sentimentos como estresse, tristeza ou raiva. Estudos indicam que indivíduos que consomem álcool de forma abusiva tendem a ter mais dificuldade em lidar com emoções negativas sem beber, em comparação com quem bebe moderadamente.1 Muitas vezes, quem bebe em excesso utiliza o álcool como “válvula de escape” para tensões do dia a dia, o que aponta para uma regulação emocional menos eficiente. De fato, pesquisa com pessoas em tratamento por dependência do álcool mostrou que elas apresentam maiores déficits na habilidade de tolerar sentimentos negativos do que indivíduos que bebem socialmente.1 Por outro lado, consumidores moderados geralmente não dependem do álcool para enfrentar emoções difíceis – eles costumam empregar outras estratégias de enfrentamento, mantendo melhor equilíbrio emocional sem precisar se embriagar. Vale notar também que o uso abusivo pode piorar as emoções no longo prazo: após episódios de bebedeira, é comum surgirem sintomas como ansiedade elevada, irritabilidade e humor deprimido durante a ressaca. 2 

Traços de Personalidade e Impulsividade

Além de afetar como lidamos com as emoções, o padrão de consumo de álcool também se relaciona a traços de personalidade. Pessoas que fazem uso abusivo de álcool frequentemente exibem traços como maior impulsividade e busca de sensações intensas, bem como uma tendência a experimentar humores negativos com mais frequência. Pesquisas recentes apontam que consumidores pesados de álcool, em média, tendem a ser menos conscienciosos (ou seja, menos disciplinados e organizados) e menos agradáveis (podendo demonstrar mais hostilidade), além de apresentarem níveis mais altos de neuroticismo – traço ligado à instabilidade emocional e propensão à ansiedade e oscilações de humor.3 Em outras palavras, quem abusa do álcool costuma ser mais impulsivo e emocionalmente reativo. Por exemplo, alguns estudos mostram que tanto bebedores moderados quanto alguns bebedores pesados tendem a ser um pouco mais extrovertidos em comparação a abstêmios, buscando socialização, mas os bebedores abusivos se diferenciam por essa impulsividade elevada e menor autocontrole, que pode levá-los a exceder os limites seguros de consumo.3 Esses traços de personalidade impulsivos podem predispor ao consumo exagerado e, ao mesmo tempo, ser agravados pelo hábito de beber em excesso, criando um ciclo negativo.

 

Padrão de Uso e Dose: Efeitos Emocionais Diferentes

O efeito do álcool nas emoções também varia conforme a dose ingerida e o padrão de uso. Em doses baixas a moderadas, o álcool costuma ter efeito desinibidor leve e ansiolítico, ou seja, pode reduzir a tensão e favorecer uma sensação de relaxamento e bem-estar momentâneo. Há evidências de que o uso moderado aumenta emoções positivas e a sensação de vínculos sociais – as pessoas ficam mais descontraídas e socialmente engajadas após pouco álcool.4 Não é à toa que, em contextos sociais, quem bebe moderadamente relata se sentir mais alegre ou sociável. No entanto, esse efeito tem um limite. À medida que a dose de álcool aumenta (no uso abusivo), os efeitos podem se tornar prejudiciais: doses altas de álcool podem gerar mudanças bruscas de humor, aumento de agressividade ou reações emocionais exageradas. Estudos com jovens adultos mostram que episódios de bebedeira intensa trazem mais consequências negativas – como arrependimentos, discussões ou comportamentos de risco – sem necessariamente aumentarem as sensações positivas.5 

Em resumo, abstêmios ou quem consome álcool de forma moderada tendem a apresentar maior equilíbrio emocional, usando a bebida em contextos sociais e demonstrando mais controle sobre seus impulsos. Já o uso abusivo está associado a maior dificuldade na regulação emocional, impulsividade e oscilações de humor. Essas diferenças são influenciadas tanto pela dose ingerida quanto por características individuais, como a forma de lidar com o estresse. Manter a moderação ajuda a proteger não só a saúde física, mas também o bem-estar emocional.


 

 

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