Recentemente, muitos veículos de comunicação têm abordado a “anorexia alcoólica”, “alcoolrexia” ou “drunkorexia” (junção da palavra drunk, que significa bêbado em inglês, e anorexia nervosa, um transtorno alimentar). Apesar deste termo ter se tornado popular, ele não é um termo médico oficial e não denomina uma doença ou síndrome específica. Mas a que se refere a “drunkorexia”? Geralmente, este termo é utilizado para indivíduos com transtornos alimentares que diminuem a ingestão de alimentos e fazem o uso nocivo do álcool. O que ocorre, muitas vezes, é que pessoas com transtornos relacionados ao uso de álcool (abuso e dependência) também apresentam transtornos alimentares, e vice-versa.
Transtornos relacionados ao uso de álcool1,2
A dependência de álcool (alcoolismo) é uma doença crônica e multifatorial; isso significa que diversos fatores contribuem para o seu desenvolvimento, incluindo a quantidade e frequência de uso do álcool, a condição de saúde do indivíduo e fatores genéticos, psicossociais e ambientais. No entanto, não são estes fatores que definem o diagnóstico de dependência.
Segundo a 5ª edição do Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria (APA, na sigla em inglês), os transtornos relacionados ao uso de álcool são definidos como a repetição de problemas decorrentes do uso do álcool que levam a prejuízos e/ou sofrimento clinicamente significativo, cuja gravidade varia de acordo com o número de sintomas apresentados, conforme quadro 1.
Quadro 1. Critérios para transtornos relacionados ao uso de álcool – DSM-5
Transtornos alimentares3
Os transtornos alimentares são perturbações severas do comportamento alimentar, identificados especialmente entre as mulheres1. Dentre os transtornos alimentares, duas síndromes são mais conhecidas: a anorexia nervosa e a bulimia nervosa.
A anorexia nervosa, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças 10 (ICD-10) da Organização Mundial de Saúde (OMS), é um transtorno caracterizado pela perda de peso intencional - por meio de diminuição na ingestão de alimentos, indução de vômitos ou purgação (uso de laxantes, por exemplo), exercícios físicos excessivos, ou uso de inibidores de apetite ou diuréticos. Há distorção na percepção do próprio corpo e medo excessivo de engordar, mesmo quando a pessoa está abaixo do peso (Índice de Massa Corporal4 igual ou inferior a 17,5), e uma desordem generalizada do sistema endócrino - podendo causar amenorréia (interrupção da menstruação) nas mulheres, e perda de interesse e redução da potência sexual nos homens.
Já a bulimia nervosa é uma síndrome caracterizada pela recorrência de ingestão excessiva de alimentos de forma compulsiva, com perda de controle, e preocupação exagerada com peso, que faz com que o indivíduo adote métodos extremos para compensar a ingestão dos alimentos, como: indução de vômitos, uso de laxantes e excesso de atividades físicas.
Tanto a anorexia nervosa como a bulimia nervosa são mais comuns entre adolescentes e mulheres jovens - cerca de 0,5 a 3% das mulheres sofrem de transtornos alimentares, segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais IV (DSM-IV). Embora as causas fundamentais da anorexia nervosa e da bulimia nervosa permaneçam ainda desconhecidas, sabe-se que fatores biológicos, genéticos, psicológicos, socioculturais e familiares contribuem para a sua causalidade.
É importante notar que não é necessária a presença de todos os sintomas destes transtornos alimentares para que se estabeleça uma associação negativa ao uso nocivo de álcool; basta apenas um sintoma importante, como dieta severa ou de risco, preocupação excessiva com o peso, insatisfação com o corpo e comportamentos compulsivos ou compensatórios com a alimentação.
Associação entre Transtornos relacionados ao uso de álcool e Transtornos alimentares5
Pelo fato dos transtornos alimentares serem mais prevalentes entre mulheres jovens (entre 18 e 24 anos), também é preciso ressaltar que as mulheres são mais vulneráveis aos efeitos do álcool do que os homens, ilustrando a importância do diagnóstico e tratamento da co-ocorrência dos transtornos relacionados ao uso de álcool e transtornos alimentares. Uma mesma quantidade de álcool geralmente afeta a mulher mais rapidamente do que o homem (mesmo levando-se em conta as diferenças no peso corporal), por apresentar características fisiológicas diferentes6.
A mulher tem menos água e mais gordura em seu corpo do que o homem; assim, o álcool torna-se mais concentrado na mulher7. Além disso, as mulheres também apresentam menores níveis das enzimas aldeído desidrogenase e álcool desidrogenase, responsáveis pelo metabolismo do álcool - ou seja, o álcool permanece no corpo da mulher por mais tempo8.
A frequência do uso de álcool, bem como a prevalência dos transtornos relacionados (abuso e dependência), é alta entre pessoas com distúrbios alimentares. Estima-se que 16% dos indivíduos com transtornos alimentares também sofrem de abuso ou dependência de álcool, sendo que a bulimia nervosa está mais associada aos transtornos relacionados ao uso de álcool do que os demais transtornos alimentares9,10.
De acordo com estudos científicos, a relação entre os transtornos alimentares e os transtornos relacionados ao uso de álcool é de mão dupla, parecendo haver maior influência dos transtornos alimentares sobre os transtornos do uso de álcool, do que o recíproco.
Muitas vezes, os indivíduos com transtornos alimentares, como a anorexia, bebem para amenizar a dor e a angústia de não “poder” comer, enquanto outros ainda acreditam que a bebida não engorda ou que ajuda a controlar a fome. Essa sensação de que o álcool diminui a fome ocorre porque o álcool aumenta a liberação de leptina11,12, uma substância associada à sensação de saciedade. Entretanto, as bebidas alcoólicas fornecem calorias, mas poucos nutrientes13, o que pode levar as pessoas, que realizam o consumo de álcool em detrimento ao de alimentos, a quadros graves de desnutrição, entre outros problemas advindos da alimentação inadequada - o organismo desprovido de alimento fica suscetível ao desencadeamento de uma série de doenças. Ainda, quando se está com estômago vazio, o álcool é absorvido mais rapidamente e exerce seus efeitos mais intensamente, além de poder ocasionar gastrites e úlcera.
No Brasil há pouquíssimos estudos com relação à incidência de transtornos alimentares concomitante aos transtornos relacionados ao uso de álcool. Há somente alguns dados sobre a prevalência de transtornos alimentares; por exemplo, sintomas de anorexia nervosa foram apresentados por 13,3% de estudantes (7 a 19 anos, ambos os sexos) de escolas públicas do interior de Minas Gerais14 e em 15,6% de adolescentes (mulheres de 10 a 19 anos) do Município de Florianópolis, Santa Catarina15.
A co-ocorrência de transtornos relacionados ao uso de álcool e de transtornos alimentares deve ser tratada seriamente. Segundo o I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira, o abuso e dependência do álcool atingem, respectivamente, cerca de 1% a 4% das mulheres (18 anos ou mais). Além disso, 14% das mulheres adolescentes entre 18 e 25 anos bebem ocasionalmente (1 a 3 vezes por mês), e 6% bebem frequentemente (1 a 4 vezes por semana)16.
O indivíduo deve buscar ajuda com profissionais da saúde quando ocorrem situações nas quais o álcool ou o transtorno alimentar possam influenciar negativamente a rotina, funções acadêmicas e/ou profissionais e as relações pessoais.