Dificuldades em andar, visão borrada, fala arrastada, tempo de resposta retardado e danos à memória. De maneira clara, o álcool afeta o cérebro. Alguns dos prejuízos causados pelo consumo do álcool ocorrem já nas primeiras doses ingeridas, e tendem a desaparecer tão logo o organismo termine de processar o etanol ingerido. Por outro lado, consumos mais intensos e frequentes podem causar prejuízos mais duradouros, que persistem mesmo depois de retomada a sobriedade. Uma série de fatores podem influenciar a maneira e a intensidade em que o álcool afeta o cérebro, a saber: - Quantidade e frequência de consumo de álcool; - Idade de início e o tempo de consumo de álcool; - Idade do indivíduo, nível de educação, sexo, aspectos genéticos e histórico familiar de alcoolismo; - Risco existente de exposição pré-natal ao álcool; - Condições gerais de saúde do indivíduo. Baseado em uma revisão apresentada pelo NIAAA (National Institute of Alcohol Abuse and Alcoholism)1 e em outras pesquisas recentes, apresentaremos alguns dos prejuízos e efeitos deletérios que o consumo de álcool pode causar para o cérebro. Os dados apresentados referem-se, principalmente, ao uso nocivo, com foco no consumo abusivo e continuado de álcool. Cabe sempre lembrar, contudo, que não há nível seguro para o seu consumo, e mesmo pequenas doses podem causar ou aumentar o risco de prejuízos ao sistema nervoso e às funções cognitivas. Álcool e o seu potencial de gerar dependência No estudo da drogadição, é ponto pacífico que qualquer droga que tenha potencial de gerar dependência afeta o sistema de recompensas do cérebro, alterando, direta ou indiretamente, a sinalização do neurotransmissor dopamina na via mesolímbica (que estabelece contato entre uma região do sistema nervoso chamada mesencéfalo, daí o termo “meso”, e uma região do sistema “límbico”, chamada núcleo Accumbens). Essa via está associada à atribuição do valor reforçador de qualquer estímulo, assim, se ele for classificado como reforçador, significa que há uma maior probabilidade de ser buscado outras vezes. Nesse sentido, o sistema de recompensa está associado a qualquer estímulo reforçador: seja comer, praticar esportes, socializar, entre outros. Há, todavia, um aspecto do sistema de recompensa em que as drogas, inclusive o álcool, possuem especial capacidade de alterar: aquilo que é chamado de “saliência” de um estímulo. A saliência de um estímulo aponta o quanto esse estímulo é novo, inusitado e potencialmente mais reforçador. Grosso modo, quanto mais saliente o estímulo, “melhor”. A saliência de um estímulo está diretamente relacionada ao aumento da sinalização dopaminérgica da via mesolímbica, implicando em um aumento de dopamina no núcleo Accumbens. Esse mecanismo de saliência, contudo, para a grande maioria dos estímulos naturais, é pontual e atenua-se tão logo o estímulo deixe de ser novo. No caso das drogas, contudo, o efeito de saliência tende a não se atenuar: a sinalização dopaminérgica se mantém acentuada, estimulando o núcleo Accumbens tal como se o estímulo fosse novo e muito reforçador. Essa é a explicação do potencial de dependência do álcool e das drogas em geral: elas “sequestram” essa via dopaminérgica e a “enganam” a se comportar como se a droga fosse muito saliente e tivesse alto valor de sobrevivência, o que não só aumenta a procura por essa droga, mas diminui o valor reforçador de todos os outros estímulos que outrora eram tidos como importantes: alimentação, socialização, etc. Para uma explicação mais pormenorizada, veja o artigo de revisão2 publicado pela pesquisadora Nora Volkow, diretora do NIDA (National Institute on Drug Abuse), e seus colaboradores. Blecaute Alcoólico (Transtorno Amnésico Alcoólico) Mais rapidamente do que seu potencial de gerar dependência, contudo, o uso de álcool pode produzir danos detectáveis à memória e outras funções executivas após apenas algumas doses e, à medida que o consumo aumenta, também aumentam os danos ao cérebro1. Altas quantidades de álcool, especialmente quando consumidas de maneira rápida e com o estômago vazio, podem produzir um “branco” ou um intervalo de tempo no qual o indivíduo intoxicado não consegue recordar detalhes de eventos ou até mesmo eventos inteiros. Os estudos sugerem que as mulheres são mais susceptíveis do que os homens para vivenciar esses efeitos adversos sob mesmas doses de álcool. Essa ação parece estar relacionada às diferenças fisiológicas existentes entre homens e mulheres no metabolismo dessa substância, assim como a menor proporção de água (o que deixa o etanol mais concentrado). Síndrome de Wernicke-Korsakoff Os danos causados pelo álcool no cérebro podem ser decorrentes tanto de causas diretamente ligadas ao uso de álcool como de fatores indiretos, como saúde geral debilitada ou doença hepática severa. A deficiência de tiamina, por exemplo, pode ser um desses fatores. A tiamina, conhecida também com vitamina B1, é um nutriente importante para todos os órgãos e tecidos, incluindo o cérebro. Mais de 80% dos alcoolistas apresentam deficiência desse nutriente. Uma parcela dessas pessoas sofrerá consequências severas no cérebro tais como a Síndrome de Wernicke-Korsakoff. Trata-se de uma doença caracterizada por duas diferentes síndromes, uma de curta duração chamada Wernicke e outra permanente e bastante debilitante chamada Korsakoff. Os sintomas da Síndrome de Wernicke incluem confusão mental, paralisia dos nervos que movem os olhos e dificuldades de coordenação motora. Aproximadamente 80 a 90% desses pacientes manifestam a Síndrome de Korsakoff, caracterizada por perdas de memória anterógrada (eventos futuros) e de memória retrógrada (eventos passados) 1. A boa notícia fica por conta do fato de que a maioria dos alcoolistas que apresentam problemas cognitivos terão alguma melhora nas estruturas cerebrais a partir de 1 ano de abstinência do álcool. O efeito do álcool no cérebro em desenvolvimento Beber durante a gravidez pode implicar em uma ampla gama de agravos ao cérebro em desenvolvimento, afetando sua própria estrutura e os processos de aprendizagem e comportamentais do bebê. Dentre os efeitos mais graves que podem ocorrer, existe um apanhado de sintomas caracterizados como Síndrome Alcoólica Fetal (SAF). Crianças com SAF podem ter características faciais alteradas, e um cérebro com tamanho geralmente inferior do que a média de sua idade e com menor volume (microcefalia). A quantidade de neurônios também pode ser diminuída, implicando em problemas de aprendizagem e comportamentais a longo-prazo1. Ainda não existe um remédio para reverter a SAF, e não beber durante a gravidez continua sendo a melhor forma de prevenção. O efeito do álcool na plasticidade do sistema nervoso A neurogênese, a criação de novas células cerebrais (neurônios), é algo que ocorre intensamente durante o período de gestação e os primeiros meses de vida do ser humano. Com o tempo, esse processo reduz drasticamente, mas nunca cessa. A neurogênese está implicada, por exemplo, no processo de criação e consolidação de novas memórias1. Nesse sentido, estudos apontam que altas doses de álcool podem levar à interrupção da criação de novos neurônios. Acredita-se, ainda, que é esse processo disruptivo que leva a lesões em áreas intimamente ligadas a funções cognitivas importantes, como a memória.