O álcool é uma substância que está presente em nossa civilização há milhares de anos e provavelmente continuará por muitos mais. Porém, um corpo extenso de evidências e estudos vem apontando que não há um limite seguro para o consumo de álcool isento de riscos para a saúde 2–5. Grande parte dessas evidências vem do estudo Global Burden of Disease and Risk Factors (GBD)1, envolvendo dezenas de pesquisadores ao redor do mundo. Consequentemente, diversos países passaram a diminuir suas recomendações de consumo moderado, como a Austrália e o Canadá. Para além da semântica do termo “consumo moderado”, entende-se que o consumo de baixo risco é um tipo de padrão de uso de álcool que segue parâmetros epidemiológicos e seja socialmente aceitável, tais como, a exemplo, os limites de velocidade para veículos automotores em estradas6. Como acertadamente colocado no artigo científico de Holmes et al. (2019)7, elaboradores de políticas públicas devem balancear evidências epidemiológicas, o parecer de especialistas e considerações pragmáticas. Por conta da complexidade do tema, existem contrapontos importantes feitos à interpretação de que a única recomendação possível nesse cenário seria a abstinência. Afinal, uma recomendação de consumo que não seja factível não teria eficácia real. A exemplo, em um artigo publicado na revista The Lancet Rheumatology8, o corpo editorial levanta alguns pontos importantes para o debate. Em síntese, os autores afirmam que: “A OMS [Organização Mundial da Saúde] alerta para que haja maior educação sobre os riscos de câncer associados ao consumo de álcool – possivelmente incluindo advertências de saúde nos rótulos das bebidas alcoólicas – e poucos argumentariam contra uma melhor informação do público no que diz respeito à saúde. Mas os riscos absolutos do consumo leve a moderado são pequenos e, embora não exista um nível seguro conhecido de consumo, parece razoável que a qualidade de vida obtida com uma bebida ocasional possa ser considerada maior do que o dano potencial”. Esses remarques finais são relevantes pois reconhecem os riscos associados ao consumo de álcool em baixas doses, como é o caso para alguns tipos de câncer, e aponta que medidas que informem os consumidores de tais riscos são bem-vindas. O contraponto feito advém da noção de que o risco absoluto de problemas de saúde em pessoas que fazem consumo leve a moderado é baixo. Ainda, os autores apontam que, potencialmente, a qualidade de vida advinda do consumo ocasional de uma dose de álcool pode ser maior do que o potencial dano. Em um estudo de 20229, o grupo do GBD aponta que, após análise de dados de 1990 a 2020, há forte evidência de que recomendações de consumo de álcool devam ser diferenciadas por faixa etária e nas taxas locais de doenças. Para indivíduos de 15 a 39 anos, a recomendação proposta é de 0 a 0,698 doses por dia; já para indivíduos com mais de 40 anos, a recomendação é de 0,114 a 1,87 doses diárias, levando em consideração um risco mínimo de exposição. Embora os autores partam do princípio de que qualquer nível de consumo de álcool implica em algum risco de lesões, baseados nas evidências de que pequenas quantidades de álcool diminuem o risco de algumas condições prevalentes em idades mais avançadas, como doença cardíaca isquêmica e diabetes, concluem que pequenas quantidades de álcool seriam seguras para pessoas com mais de 40 anos. Há ainda um outro corpo de evidências que se formam em relação à influência do estilo de vida para o desenvolvimento de doenças crônicas. Em 2014, a Organização Mundial da Saúde atribuiu mais de dois terços das mortes em todo o mundo (38 milhões) a doenças crônicas. Evidências bem estabelecidas mostram que a incidência de câncer, doenças cardiovasculares, doenças respiratórias crônicas e diabetes compartilham fatores de risco modificáveis, como consumo de álcool, índice de massa corporal (IMC), tabagismo, dieta pouco saudável e inatividade física. Estudo examinando a incidência do primeiro diagnóstico de uma doença crônica de uma pessoa e as relações entre fatores de risco modificáveis do estilo de vida10 mostrou que para ambos os sexos, não consumir álcool foi associado a um maior risco de diabetes e infarto do miocárdio em ambos os sexos. O IMC não saudável foi associado a riscos aumentados de diabetes em ambos os sexos e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), câncer de pulmão e infarto do miocárdio em homens. A diminuição do consumo diário de frutas e vegetais foi associada a um maior risco de diabetes em ambos os sexos, de câncer de pulmão e DPOC. Como as doenças crônicas se tornam mais prevalentes com o avanço da idade, a ideia de que o consumo moderado de álcool é mais seguro para pessoas com mais de 40 anos, faixa em que as doenças coronarianas e a diabetes são mais frequentes, ganha reforço. Desse modo, é razoável pensar que as novas diretrizes baseadas na premissa de que não existe um nível seguro de consumo de álcool não devem ser interpretadas como recomendação de abstinência para todas as pessoas, ou de que não seria mais possível se falar em moderação. Para algumas populações, a recomendação permanece sendo álcool zero, como no caso das grávidas, motoristas, e pessoas que por alguma condição de saúde não possam ingerir a substância. No entanto, para as pessoas que não possuem essas limitações, as novas pesquisas, além de apontar para o fato de que há riscos envolvidos em todos os padrões de consumo (que são exponenciais em altas doses), também indicam que o risco de consumo deve ser ponderado a partir de outras variáveis, como a idade e fatores associados ao estilo de vida. De todo modo, ainda se faz presente a necessidade de mais estudos que possam amparar políticas públicas para guiar a população que deseja beber e se manter saudável.