O uso nocivo de álcool está relacionado a danos em múltiplos órgãos, como fígado, intestino e cérebro. O fígado e, em menor extensão, o trato gastrointestinal (TGI) estão envolvidos no metabolismo do álcool e são, consequentemente, atingidos pelo consumo nocivo de álcool de maneira acentuada.
O intestino é o maior reservatório de microrganismos (bactérias, fungos, leveduras e vírus) no corpo. O papel exato da microbiota intestinal ainda é amplo tema de pesquisa. Apesar disso, sabe-se que tais microrganismos participam da síntese de vitaminas e aminoácidos, catabolismo (ou “quebra”) de macromoléculas, fornecimento de energia, metabolismo de drogas e toxinas e preservação da barreira intestinal1. Importante destacar que desequilíbrios na microbiota têm impacto em doenças como diabetes, obesidade e síndrome do intestino irritável, além de doenças hepáticas relacionadas ao uso de álcool.
A fisiopatologia das condições que levam às alterações relacionadas ao álcool e microbiota intestinal é vasta e multifatorial. Sabe-se que o consumo excessivo de álcool facilita o crescimento bacteriano intestinal, principalmente no intestino delgado2. Em especial, o consumo excessivo e crônico de álcool favorece a má absorção de nutrientes como a tiamina (vitamina B1)3, modificando o equilíbrio bacteriano e alterando também o metabolismo da microbiota. Outros estudos recentes mostram que os prejuízos do álcool no trato gastrointestinal também são decorrentes de alterações da composição da flora bacteriana e da desregulação do ácido biliar4.
As abordagens diagnósticas usadas para estudar as modificações da funcionalidade da barreira intestinal, como os exames laboratoriais, são essenciais para determinar a gravidade, extensão e progressão das doenças hepáticas relacionadas ao uso de álcool 1.
O cuidado do paciente com doença hepática relacionada ao uso de álcool visa prevenir o início ou a progressão do dano hepático, encorajando a abstinência de álcool. Porém, a eficácia dos tratamentos é altamente dependente da gravidade da doença e da capacidade de se manter abstêmio do álcool, visto que a abstinência do álcool é considerada o ponto chave para a possível melhora da histologia hepática e da sobrevida do paciente com doença hepática relacionada ao uso de álcool.
Como dificuldades relacionadas ao tratamento são comuns, diversos estudos têm investigado potenciais estratégias terapêuticas destinadas a modular a composição das bactérias intestinais por meio de abordagens não direcionadas, incluindo dieta, prebióticos, probióticos e transplante de microbiota fecal.
Um estudo publicado em 2020, por exemplo, destacou o transplante de microbiota fecal como uma forma de redução da fissura e do desejo em relação ao consumo de álcool. Os pesquisadores separaram pacientes com dependência de álcool e cirrose em dois grupos, placebo e intervenção; neste delineamento experimental, apenas o grupo intervenção receberia transplante de microbiota fecal de doadores com microbiota rica em Lachnospiraceae e Ruminococcaceae. Os autores observaram que, além da redução da fissura pelo álcool, houve redução dos efeitos adversos relacionados ao próprio consumo abusivo de álcool. É necessário, porém, maior número amostral para confirmar os achados5, além de mais pesquisas investigando o tema.
O estudo da modulação do eixo intestino-fígado é relevante, uma vez que muitos pacientes são candidatos ao transplante hepático3. Espera-se que novas pesquisas consigam investigar mais o papel da microbiota em determinar o motivo de alguns pacientes desenvolverem certos fenótipos de lesões associadas ao uso de álcool, ao passo que outros não são afetados. Além disso, espera-se poder determinar o ponto de “não retorno”, ou seja, o momento na história da doença hepática em que as alterações microbianas persistem apesar da abstinência de álcool. Por fim, as pesquisas aqui mencionadas apontam a importância de se avaliar o papel da conexão entre o cérebro e o intestino na promoção de recaídas, além de estudar como este eixo cérebro-intestino pode causar modificações funcionais na microbiota, incluindo modificações nos ácidos biliares, pois podem ser fontes promissoras para terapias futuras.