O consumo excessivo de álcool causa danos a quase todos os órgãos do corpo. No entanto, o fígado sofre os primeiros e maiores graus de lesão tecidual devido ao consumo excessivo de álcool, pois é o órgão que realiza quase todo o metabolismo do etanol.1 Nesse texto vamos explorar como o fígado é atingido pelo consumo nocivo de álcool. A função do fígado O funcionamento normal do fígado é essencial à vida. O fígado é o maior órgão interno do corpo humano e, em alguns aspectos, o mais complexo. Uma de suas principais funções é degradar as substâncias tóxicas absorvidas do intestino ou produzidas em outras áreas do corpo e, em seguida, excretá-las pela bile ou pelo sangue como subprodutos inofensivos. Além disso, o fígado secreta bile no intestino delgado para ajudar na digestão e absorção de gorduras, armazena vitaminas, sintetiza proteínas e colesterol, metaboliza e armazena açúcares. O fígado controla a viscosidade sanguínea e regula os mecanismos de coagulação.2 Doença hepática alcoólica Um estudo estimou que 23,6 milhões de pessoas em todo o mundo apresentam cirrose associada ao álcool, com aproximadamente 10% desses casos apresentando doença descompensada.3 No entanto, a verdadeira carga da doença hepática alcoólica é provavelmente subestimada, pois muitas vezes não é diagnosticada. Está claro que existe uma relação direta dependente da dose entre a quantidade de álcool consumida e o risco de doença hepática grave. Uma meta-análise demonstrou que mesmo níveis muito baixos de consumo de álcool aumentam o risco de mortalidade relacionada à cirrose. Esse risco é acentuado com o aumento do consumo, com homens e mulheres que consomem mais de 60 g de álcool por dia apresentando um risco 14 e 22,7 vezes maior, respectivamente, de morte relacionada à cirrose, em comparação com não bebedores.4 Como o álcool afeta o metabolismo do fígado 5 Quando consumido em excesso, o álcool interfere em uma enzima chamada AMPK, que normalmente ajuda a regular o metabolismo das gorduras. A AMPK ativa outra proteína, PPARα, que é importante para a queima de ácidos graxos. O álcool inibe a AMPK, e isso resulta em uma menor queima de gordura pelo fígado. Além disso, o álcool causa danos nas mitocôndrias, as "fábricas de energia" das células, o que também reduz a capacidade do fígado de queimar gorduras. O álcool também aumenta a produção de ácidos graxos no fígado. Além disso, o consumo de álcool reduz a produção de adiponectina, um hormônio que ajuda a controlar os níveis de gordura, e aumenta a liberação de ácidos graxos dos depósitos de gordura do corpo. Por outro lado, o álcool inibe a secreção de ácidos graxos pelo fígado, o que contribui ainda mais para o acúmulo de gordura no órgão. Ele também afeta várias vias de sinalização celular, incluindo aquelas associadas à inflamação e à regulação da autofagia (processo de limpeza celular). Essas mudanças contribuem para a progressão da esteatose hepática alcoólica, uma condição caracterizada pelo acúmulo excessivo de gordura no fígado. Além disso, o álcool pode causar um desequilíbrio nas bactérias intestinais, o que piora a doença hepática. Esse desequilíbrio aumenta o metabolismo do etanol no intestino e causa disfunção intestinal. Bactérias e toxinas podem entrar na circulação e alcançar o fígado, ativando uma via inflamatória chamada NFκB. As citocinas pró-inflamatórias liberadas nesse processo contribuem para a inflamação e fibrose no fígado. O álcool também favorece a necrose (morte celular descontrolada) em vez da apoptose (morte celular programada), o que pode agravar ainda mais a condição hepática. Tipos de lesões hepáticas provocadas pelo álcool Em indivíduos que fazem uso abusivo do álcool as doenças hepáticas mais encontradas são: Esteatose alcoólica (fígado gorduroso): A deposição de gordura ocorre em quase todos os indivíduos que fazem uso abusivo e frequente do álcool. A esteatose corresponde ao primeiro estágio da doença hepática alcoólica. A esteatose também pode ocorrer em indivíduos diabéticos, obesos, com desnutrição proteica severa e usuários de determinados medicamentos.1 Hepatite alcoólica: Esta condição implica em uma inflamação e/ou destruição (ex. necrose) do tecido hepático. Os sintomas incluem: perda de apetite, náusea, vômito, dor abdominal, febre e em alguns casos, confusão mental.2 Cirrose alcoólica: É uma forma avançada de doença hepática decorrente de um dano progressivo das células hepáticas. Um fígado cirrótico é caracterizado por uma fibrose extensa que compromete o funcionamento do fígado, podendo inclusive prejudicar o funcionamento de outros órgãos como cérebro e rins.2 Hepatocarcinoma (Câncer de fígado): O consumo crônico e abusivo de álcool também está associado a um risco aumentado de desenvolver hepatocarcinoma, um tipo de câncer de fígado. Este câncer pode surgir em um fígado que já apresenta cirrose ou, em alguns casos, diretamente devido aos efeitos carcinogênicos do álcool.6 De que maneira o álcool danifica o fígado? O álcool danifica o fígado por vários mecanismos, e nem todos os alcoolistas desenvolvem problemas hepáticos, independentemente da quantidade consumida. Fatores genéticos podem influenciar a predisposição à cirrose, com a síntese de colágeno no fígado sendo afetada pela ativação de genes específicos.5 Variações genéticas nas enzimas que metabolizam o álcool, como o gene ALDH, também podem aumentar a susceptibilidade ao dano hepático. O metabolismo do álcool gera radicais livres e acetaldeído, que causam danos celulares no fígado.7 As mulheres são mais suscetíveis à cirrose com menores doses acumuladas de álcool devido à menor atividade da ADH gástrica e diferenças no metabolismo de ácidos graxos.1,5,8 Além disso, a nutrição interage com a toxicidade do álcool, exacerbando os danos hepáticos. A infecção pelo vírus da hepatite C também aumenta o risco e a progressão das lesões hepáticas em alcoolistas.3 Em suma, o consumo intenso e crônico de álcool predispõe indivíduos a doenças hepáticas, mas apenas uma parte deles desenvolve hepatite ou cirrose, devido à influência de fatores como hereditariedade, gênero, dieta e comorbidades. A maioria das lesões hepáticas causadas pelo álcool resulta do seu metabolismo e subprodutos tóxicos. Pesquisas contínuas são essenciais para entender melhor esses mecanismos e desenvolver tratamentos eficazes, visando melhorar a prevenção e o manejo das doenças hepáticas alcoólicas.