O sono é essencial para nossa saúde física e mental, e sua alteração pode piorar diversos quadros de saúde, como diabetes, doenças renais, cardíacas e depressão. A relação causal entre os distúrbios de sono e o consumo do álcool parece ser mutuamente reforçadora: a dependência dessa substância pode causar ou piorar distúrbios do sono, criando um círculo vicioso. Em uma revisão narrativa da literatura científica, Reid-Verley et al. (2020) discutem as interações entre consumo de álcool e sono. O álcool é uma substância que produz diversos efeitos no cérebro, sendo alguns relacionados à regulação do sono. O uso crônico de álcool promove o aumento da sinalização do neurotransmissor GABA (sigla para ácido gama-aminobutírico) e prejudica a sinalização do neurotransmissor acetilcolina. Logo após esse consumo, o sistema nervoso entra em um estado de “hiperexcitação”, acompanhado de sintomas de ansiedade, risco de convulsões e insônia. Os efeitos que os transtornos por uso de álcool (como abuso e dependência) podem causar no sono variam conforme a intensidade de consumo e o estado em que se encontra: intoxicação, privação aguda ou abstinência extensa. Um conjunto de estudos, analisados por Reid-Varley e colaboradores1, aponta diferentes interações entre álcool e sono em cada um desses períodos. Durante a fase aguda de intoxicação por álcool, um dos efeitos imediatos é a facilidade de se iniciar o sono. Essa maior rapidez em se pegar no sono, contudo, é inicialmente contrabalanceada por uma diminuição dos estágios mais reparadores e profundos do sono*, e, depois de algumas horas, por uma maior chance de se acordar no meio da noite. Deve-se salientar que esses efeitos podem ser observados em qualquer pessoa que fizer uso nocivo de álcool, e, desse modo, não é necessário um quadro clínico de dependência de álcool para prejudicar o sono. A tabela 1, abaixo, mostra os efeitos do álcool no sono de uma pessoa em fase aguda de intoxicação por álcool, na primeira e na segunda metade do sono. Observa-se que os estágios do sono REM* são diminuídos na primeira metade do sono, ao passo que estão prolongados na segunda metade. Além disso, é importante salientar que os ciclos entre sono Não-REM e sono REM são diminuídos devido à intoxicação aguda por álcool, e esse processo, na soma total, resulta em uma diminuição do sono REM. Apenas 2 a 3 desses ciclos são observados após um episódio de consumo pesado de álcool, enquanto em um sono normal há cerca de 6 ciclos de alternância entre sono NREM e REM. Tabela 1. Efeitos agudos do álcool no sono. Latência Sono Não-REM Sono REM 1ª metade do sono diminuída prolongado diminuído 2ª metade do sono - diminuído prolongado O sono REM (Rapid Eyes Movement) é um estágio do sono relacionado a vários efeitos reparadores e de consolidação cognitiva, em que se observa uma movimentação rápida do globo ocular. Já o sono Não-REM é um conjunto de estágios do sono em que a movimentação rápida dos olhos não é observada. Para pessoas com dependência de álcool, o sono pode ser prejudicado mesmo durante a privação do consumo. As mudanças observadas tendem a ser opostas às que ocorreriam durante a fase aguda. Dependentes em abstinência demoram mais para pegar no sono e são mais propensos a ter insônia, muito embora também seja observado uma normalização, ou aumento, de estágios mais profundos do sono (conhecido como rebote do sono REM). Mesmo depois de um longo período sem consumir álcool, dependentes podem ainda apresentar problemas na arquitetura do sono, quando comparados com pessoas sem histórico de dependência. Isso pode persistir por meses, e até anos, após o início da abstinência. Diversas barreiras – que englobam a negação do problema, estigma e falta de acesso a serviços de saúde – fazem com que o tratamento de transtornos por uso de álcool não atinja todas as pessoas que seriam beneficiadas, apesar de sua importância. Isso quer dizer que poucos indivíduos que recebem o diagnóstico (ou têm histórico de abuso de álcool) obtiveram tratamento para a doença. E isso afeta também as estatísticas dos distúrbios de sono, pois eles são frequentes em pessoas com transtorno por uso de álcool, que, dentre outros motivos, bebem para poder pegar no sono. Reid-Varley e colaboradores apontam, segundo pesquisas de saúde pública na América do Norte, que 18% das pessoas com transtorno por uso de álcool relataram ter tido insônia nos 6 meses anteriores à entrevista. Além de afetar a quantidade e a qualidade do sono, o consumo nocivo de álcool pode aumentar o risco de outras alterações fisiológicas que interferem, direta ou indiretamente, no sono. Em pacientes sem o histórico de uso crônico de álcool, episódios de intoxicação aguda estão relacionados a problemas nas vias aéreas superiores – por meio de redução do tônus da musculatura orofaríngea – e são tidos como fator de risco para apneia obstrutiva do sono. De fato, estudos laboratoriais indicam que o uso de álcool pode aumentar a frequência e a duração de apneias durante o sono. Portanto, observa-se que o sono pode ser prejudicado em diversos padrões e gradações de consumo nocivo de álcool, seja um episódio de intoxicação, no transtorno por uso de álcool, na privação aguda ou na abstinência. A relação multifacetada do álcool com os distúrbios do sono deve ser considerada dentro de um quadro abrangente de saúde mental, já que ambos constituem um fator de risco ou agravante de diversos transtornos psiquiátricos, em especial a dependência do álcool. * Dentre esses estágios está aquele que é chamado de sono “REM” (do inglês Rapid Eyes Movement).