O uso de bebidas alcoólicas no Brasil é realidade bastante difundida e fonte de preocupação entre as autoridades. Seja pelo seu uso em festas e celebrações populares quanto pelo impacto na saúde pública, esse fenômeno se faz notar gerando debate intenso e, por vezes, controverso. Dessa maneira, é de vital importância que o assunto seja encarado de forma séria e baseado em evidências, deixando de lado visões apaixonadas e distantes da realidade brasileira a fim de que políticas eficazes de saúde pública sejam postas em prática. Em termos gerais, há no Brasil uma carência de dados científicos sobre o uso de bebidas alcoólicas pela população. Vale salientar, entretanto que há uma série de estudos epidemiológicos feitos no país, com destaque para os estudos epidemiológicos de grande abrangência (I e II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas), os quais criam uma espécie de “mosaico” de conhecimento da questão.
1.1) Levantamentos populacionais gerais
1.1a) I e II Levantamento Domiciliar
No ano de 2001 o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) realizou uma pesquisa domiciliar de caráter nacional em 107 cidades brasileiras com população superior a 200.000 habitantes na faixa etária compreendida entre 12 e 65 anos. A pesquisa teve como principal objetivo estimar pela primeira vez no país a prevalência do uso de álcool e de outras drogas. Os resultados encontram-se em um relatório intitulado “I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil”.
Os resultados em relação ao uso de álcool no Brasil1,2 revelam que 77,3% dos homens e 60,6% das mulheres já fizeram uso de álcool na vida, totalizando em 68,7% o número de participantes que já fizeram uso de álcool na vida. Em todas as faixas etárias estudadas, os indivíduos do sexo masculino fizeram mais uso de álcool na vida do que os indivíduos do sexo feminino.
Quanto ao uso regular de bebidas alcoólicas (mínimo de 3 a 4 vezes por semana, incluindo aqueles que bebem diariamente), 9,1% dos homens e 1,7% das mulheres fazem uso regular de álcool, totalizando em 5,2% o número de indivíduos que bebem regularmente. É importante notar a diferença entre o consumo regular de álcool por homens e mulheres. Nas faixas etárias entre 12 e 17 anos, 0,2% dos homens e 0% das mulheres fazem uso regular de álcool. Dos 18 aos 24 anos, 5,6% dos homens e 1,4% das mulheres bebem regularmente, sendo que dos 25 aos 34 anos os indivíduos do sexo masculino bebem cinco vezes mais do que os indivíduos do sexo feminino, totalizando 10,8% dos homens e 2% das mulheres. Esta diferença permanece constante na faixa etária dos 35 aos 65 anos, em que 13,3% dos homens e 2,2% das mulheres fazem uso regular de álcool.
Quanto a prevalência de dependentes de álcool, 17,1% dos homens e 5,7% das mulheres são dependentes, totalizando em 11,2% a porcentagem de dependentes alcoólicos. O número maior de dependentes encontra-se nas faixas etária dos 18 aos 24 anos em que 23,7% dos homens e 7,4% das mulheres são considerados dependentes.
No ano de 2005, o CEBRID realizou a segunda versão desse estudo, intitulado de “II Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil – 2005”, visando a acompanhar o panorama geral de uso de álcool e outras drogas na sociedade brasileira e de notar possíveis flutuações na prevalência de uso dessas substâncias2. A pesquisa indicou que o número de brasileiros, com idades entre 12 e 65 anos, dependentes de bebidas alcoólicas foi de 12,3%, o que corresponde à população de 5.799.005 pessoas.
A comparação das duas pesquisas permitiu observar um agravamento nos indicadores de uso de álcool. No I Levantamento Domiciliar a prevalência de dependência de álcool foi de 11,2% na população geral, sendo de 17,1% entre homens maiores de 12 anos e de 5,2% na faixa dos 12 aos 17 anos. No II Levantamento a estimativa de dependentes de álcool foi de 12,3%, sendo de 19,5% entre homens e de 6,9% entre mulheres. Os dados também indicaram aumento do consumo de álcool em faixas etárias cada vez mais precoces. Em 2001, o número de dependentes na faixa de 12 a 17 anos foi de 5,2% contra 7% em 2005. O estudo constatou também que o maior número de dependentes de bebidas alcoólicas continua sendo do sexo masculino na faixa etária entre 18 e 24 anos, o percentual foi de 23,7% (2001) e 27,4% (2005). O número de pessoas que procuraram tratamento reduziu de 4% em 2001 para 2,9% em 2005, respectivamente de 1,9 milhão de pessoas para 1,4 milhão.
O uso na vida de álcool, nas 108 maiores cidades do País, foi de 74,6%, porcentagem superior àquela encontrada no I Levantamento (68,7%). O menor uso na vida de álcool, segundo o II Levantamento Domiciliar, ocorreu na Região Norte (53,9%), ao passo que o maior foi na região Sudeste (80,4%). Desse modo, concluísse que o uso de álcool contribui fortemente na etiologia e manutenção de vários problemas sociais, econômicos e de saúde enfrentados no Brasil.
1.1b) Levantamentos populacionais com estudantes de ensino fundamental e médio3:
Segundo os levantamentos populacionais com estudantes de ensino fundamental e médio de 10 capitais brasileiras (estudos realizados nos anos de 1987, 1989, 1993 e 1997), a cerveja foi a bebida mais consumida, com cerca de 70% dos estudantes fazendo menção ao seu uso. A comparação desses levantamentos com estudantes permite concluir que o uso na vida de álcool se manteve estável, ao passo que o uso pesado (definido como sendo o uso de 20 vezes ou mais de álcool no mês anterior a pesquisa) aumentou na maioria das cidades investigadas.
1.1c) Levantamentos populacionais com estudantes de ensino superior
Stempliuk e colegas4 compararam a prevalência do uso de álcool entre estudantes da Universidade de São Paulo em uma amostra aleatória selecionada de 3590 alunos de graduação nos anos de 1996 e 2001. Os autores observaram aumento no uso de álcool no período em questão, com 88,5% e 91,9% dos entrevistados relatando já ter feito uso na vida de bebidas alcoólicas nos anos de 1996 e 2001, respectivamente.
1.1d) Levantamentos populacionais na cidade de São Paulo-SP
Silveira e colegas5 investigaram o consumo de bebidas alcoólicas em uma amostra de 1.464 pessoas residentes dos bairros de Vila Madalena e Jardim América. Os autores observaram que o beber pesado (5 ou mais doses de álcool por ocasião para homens e 4 ou mais doses de álcool para mulheres) se mostrou um padrão de consumo comum nesta amostra, com 10.7% dos entrevistados fazendo menção ao uso pesado do álcool, sendo 15.4% homens e 7.2% mulheres. Entre os homens, o risco de beber pesado esteve aumentado para aqueles entre 18 e 24 anos de idade (1 a cada 3 homens nesta faixa etária bebe neste padrão). Ademais, o beber pesado se concentrou entre os mais jovens (18 a 24 anos), os quais se mostraram mais expostos a riscos (violência, acidentes de trânsito, faltas ao trabalho). Além disto, as maiores taxas de beber pesado em homens foram observadas entre os homens que nunca se casaram (2.3 vezes mais do que os casados), estudantes (23.3%) e de baixa renda (2 vezes mais do que em indivíduos de alta renda). No caso das mulheres, notou-se que as aquelas entre 18 e 44 anos de idade e as que não eram casadas, ou seja, separadas, divorciadas, viúvas ou solteiras, foram as que mais fizeram uso do álcool neste padrão. Ademais, notou-se um aumento do beber pesado à medida que a escolaridade das mulheres aumentou.
1.1e) Levantamentos populacionais na cidade de Botucatu-SP
Kerr-Corrêa e colegas6 entrevistaram 740 sujeitos (50,3% eram homens e 49,7% eram mulheres) em Botucatu-SP. Trata-se de uma cidade de 108.306 habitantes localizada no interior do Estado de São Paulo. Os autores investigaram os padrões de consumo de álcool e o dividiram em 8 categorais, com destaque para as seguintes: abstinente (ausência de consumo de álcool nos últimos 12 meses), uso leve e episódico (ingestão de ao menos 1 dose e não mais de 3 doses de álcool por ocasião durante no máximo 1 dia do último mês), uso moderado e periódico (uso de ao menos 3 e não mais de 4 doses de álcool por ocasião ao menos semanal) e uso problemático de álcool (uso de ao menos 5 doses de álcool por ocasião ao menos semanalmente nos últimos 12 meses associado com ao menos 1 complicação de natureza médica, legal, familiar ou no trabalho e ao menos 1 sintoma de dependência de álcool). Os autores constataram que 45,5% dos entrevistados eram abstinentes de álcool, ao passo que 18,1% fizeram uso leve e periódico; 6,9% relataram fazer uso moderado e periódico e 4,2% uso problemático de álcool. Em termos gerais, os padrões de consumo de álcool foram similares para ambos os sexos e tenderam para a moderação. Essa similaridade foi mais marcante quando a comparação com os homens teve como alvo as mulheres que necessitam sair de casa para trabalhar ou que se definiram como sendo desempregadas. Vale salientar, entretanto, que os homens apresentaram maior consumo em termos gerais de álcool e, em particular, entre os bebedores problemáticos dessa substância, houve predomínio de homens na faixa etária de 35-49 anos em comparação às mulheres. Entre os fatores de risco para o uso de álcool entre ambos os sexos houve o nível elevado de escolaridade e histórico familiar de problemas com álcool. Esses dados sugerem haver mudanças nos papéis sociais dos homens e das mulheres em prol de uma aproximação de ambos.